quarta-feira, 18 de outubro de 2017

O moinho de vento I



Eleutério

Se havia um homem capaz de construir uma casa toda em pedra, em granito, de baixo até cima, esse homem era Eleutério, Lautério como lhe chamava o povo.
Desde as fundações, até ao telhado, parede por parede e divisão por divisão formava-se-lhe uma imagem na cabeça, só constituída por linhas e retas e depois era só segui-la. 
Claro que era preciso escolher a pedra, escolher o corte, e como caixas de fósforos montá-las umas sobre as outras, compondo num lado, rematando no outro e ajustando com a régua de madeira e o fio do prumo.
Mas não estava sozinho nessa tarefa. 
Os serviços florestais tinham contratado uma série de pedreiros e carpinteiros, ferreiros e duas cozinheiras, para construírem a casa de Adrão. Os primos Caturros tinham vindo com ele e dedicaram-se a fazer o carvão na serra. Subiam à floresta e desciam aos infernos a carbonizar os troncos de urze e giesta, soterrados por terra e pedras.
Já se tinha decidido o local onde iria ficar a casa, acima da aldeia, o distante necessário para que não existisse familiaridade com o povo e perto da serra para controlar a floresta e seus inimigos, os gados e os fogos e pior ainda, as pessoas. Para o engenheiro dos serviços florestais, todo o mal estava nas pessoas que não respeitavam, cortavam e abusavam da floresta.
O engenheiro mostrava os planos a Eleutério. Aqui a entrada, a cozinha, à esquerda as arrecadações e à direita um quarto. Em frente a casa de banho e outro quarto à direita e mais duas divisões à esquerda, um escritório e outro quarto de visitas. Portas e janelas e uma chaminé. O telhado viria mais tarde.
A partir daquele momento, o pedreiro gravava essa imagem da casa na sua mente, inventava uma história, imaginava a mulher do guarda na cozinha, o guarda no escritório e os filhos, uns a dormir nos quartos, alguém na casa de banho. Nas arrecadações guardavam alfaias e outros trastes necessários. Em volta da casa via as crianças a correrem e a brincarem.
Ele ainda não conhecia o guarda, mas imaginava-o. Também ele gostaria de ser guarda-florestal, se fosse mais novo, mas a vida não calhou. Por este meio, dando significado aqueles espaços desabitados, o desenho ganhava vida e dali até à casa erguida em pedra, era um salto na cabeça e muito trabalho nas mãos e braços e esforço no corpo todo.
Sim, fazer uma casa de raiz até ao teto, com tantas divisões, tudo a poder de braços não é obra para qualquer um. É preciso muito querer, muita vontade e fé.
Desde cedo começou a trabalhar com o pai e o avô nas pedras, na reconstrução duma igreja em Riba de Mouro, onde nascera, casas nas aldeias vizinhas e foi o guarda de Monção que o indicou ao engenheiro. E ele ali veio parar. A serra era a mesma, a serra de Soajo, apenas no lado oposto onde tinha nascido.
Os outros traziam as pedras ainda em bruto e ele com o martelo e ferro acabava-lhe os contornos, definia-lhe as feições e determinava o local onde iriam repousar. Na periferia da porta, nas agruras do vento norte, nos contrafortes do lado sul ou nos contornos da janela.


Era domingo e festa no Senhor da Paz, o padroeiro daquelas redondezas. 
Eleutério tinha desafiado a mulher e dois filhos a virem à festa. Já tinha sido a missa, procissão e rematação. Este ano o arraial estava abonado e os lances renderam bom dinheiro para o padroeiro. Tudo desapareceu, até uns tamancos e uma albarda dum burro que uma mulher ofereceu em paga duma promessa.
Algumas vacas já tinham sido transacionadas mas ainda faltavam umas três ou quatro que resistiam aos ânimos dos regatões e à desilusão dos donos. E duas éguas a quem o comprador tanto desejava, mas o dinheiro não crescia.

 Os habitantes levavam os convidados para almoçarem em suas casas; os outros romeiros estendiam as mantas à sombra dos carvalhos e depois de abrirem seus açafates, disfrutavam o que tinham trazido, ovos de cor castanha cozidos, com cebola, chouriço, presunto e galinha estufada. Tudo acompanhado com boa broa de milho e centeio e vinho da bota. 
Mais logo será o baile e os ajustes de contas, para quem tem contas atrasadas; o Senhor da Paz a todos ouvirá e neste terreiro se fará o que tiver de acontecer, gritos de mulheres, escaramuças e algumas cabeças rachadas, tudo fruto de amores contrariados e malquerenças de vizinhança por resolver.
José da Eira aproxima-se do grupo onde estava Eleutério e depois das apresentações iniciais e cordiais de quem está interessado numa aquisição, fica a saber que a Casa da Coroa, da Guarda Florestal está prestes a acabar. As suas artes de pedreiro afamado serão requisitadas para outras bandas, quem sabe pra Vila de Soajo ou arredores.
De pé, cabelo penteado ao lado esquerdo e cara lisa, brilhante do sabão da barba, encostado à sua vara de marmeleiro, conta José da Eira o seu projeto, um moinho de vento, redondo do cimo ao fundo, como naquelas redondezas nunca se vira antes. Dum lado estende-se a vista da Várzea à Peneda e ao Olelas. Do outro, Paradela e as serranias desde Espanha, Lindoso e Amarela até Viana. 
Será Eleutério homem para uma coisa igual?
De pé, com a mão esquerda caída e a direita a afagar as curvas dos queixos, o cabelo revolto, franze o sobrolho e vai dizendo para si próprio, 
é uma casa em redondo… espeto oito estacas no chão e faço um circulo. Se todas as pedras tiverem a mesma altura e largura só lhes acrescento a redondeza… e depois é subir por ali arriba, deixando espaço para uma porta e duas janelas.
Adivinhando-lhe os pensamentos acrescenta o outro,
 E escadas no interior para subir ao primeiro andar 
Claro, claro, diz Eleutério. Bem nunca fiz uma coisa assim, mas não sou homem para recuar. Sou de Riba de Mouro e não volto a cara a um desafio. Eu e os meus dois ajudantes faremos esse palácio.
Palácio? Bem, não é um palácio, é antes um mirante do palácio. O palácio é esta serra toda, cheia de verde, é este azul que nos protege, estes barrancos que nos escondem e revelam. A serra é o palácio onde sou mais livre e donde grito aos outros a alegria que tenho de estar vivo.
E o telhado?

O telhado fica por minha conta. Virá da Póvoa de Varzim, dizia o contratante, enquanto muda a vara de marmeleiro da mão esquerda para a mão direita e olha a serra, desde Outeiro Maior até à Cascalheira. Ainda não sabe, ou finge que não sabe, porque os mistérios da mente são difíceis de adivinhar, mas é na memória dos moinhos da Ajuda, em Lisboa que vai buscar todo esse encanto, essa fantasia prestes a tornar-se realidade. Um olhar que do alto da Ajuda sobrevoe Belém e atravesse o rio para a outra margem.

MRodas

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