Eleutério
Se havia
um homem capaz de construir uma casa toda em pedra, em granito, de baixo até
cima, esse homem era Eleutério, Lautério como lhe chamava o povo.
Desde as
fundações, até ao telhado, parede por parede e divisão por divisão
formava-se-lhe uma imagem na cabeça, só constituída por linhas e retas e depois
era só segui-la.
Claro que
era preciso escolher a pedra, escolher o corte, e como caixas de fósforos
montá-las umas sobre as outras, compondo num lado, rematando no outro e
ajustando com a régua de madeira e o fio do prumo.
Mas não
estava sozinho nessa tarefa.
Os
serviços florestais tinham contratado uma série de pedreiros e carpinteiros,
ferreiros e duas cozinheiras, para construírem a casa de Adrão. Os primos
Caturros tinham vindo com ele e dedicaram-se a fazer o carvão na serra. Subiam
à floresta e desciam aos infernos a carbonizar os troncos de urze e giesta,
soterrados por terra e pedras.
Já se
tinha decidido o local onde iria ficar a casa, acima da aldeia, o distante
necessário para que não existisse familiaridade com o povo e perto da serra
para controlar a floresta e seus inimigos, os gados e os fogos e pior ainda, as
pessoas. Para o engenheiro dos serviços florestais, todo o mal estava nas
pessoas que não respeitavam, cortavam e abusavam da floresta.
O
engenheiro mostrava os planos a Eleutério. Aqui a entrada, a cozinha, à
esquerda as arrecadações e à direita um quarto. Em frente a casa de banho e
outro quarto à direita e mais duas divisões à esquerda, um escritório e outro
quarto de visitas. Portas e janelas e uma chaminé. O telhado viria mais tarde.
A partir
daquele momento, o pedreiro gravava essa imagem da casa na sua mente, inventava
uma história, imaginava a mulher do guarda na cozinha, o guarda no escritório e
os filhos, uns a dormir nos quartos, alguém na casa de banho. Nas arrecadações
guardavam alfaias e outros trastes necessários. Em volta da casa via as
crianças a correrem e a brincarem.
Ele ainda
não conhecia o guarda, mas imaginava-o. Também ele gostaria de ser
guarda-florestal, se fosse mais novo, mas a vida não calhou. Por este meio,
dando significado aqueles espaços desabitados, o desenho ganhava vida e dali
até à casa erguida em pedra, era um salto na cabeça e muito trabalho nas mãos e
braços e esforço no corpo todo.
Sim,
fazer uma casa de raiz até ao teto, com tantas divisões, tudo a poder de braços
não é obra para qualquer um. É preciso muito querer, muita vontade e fé.
Desde
cedo começou a trabalhar com o pai e o avô nas pedras, na reconstrução duma
igreja em Riba de Mouro, onde nascera, casas nas aldeias vizinhas e foi o
guarda de Monção que o indicou ao engenheiro. E ele ali veio parar. A serra era
a mesma, a serra de Soajo, apenas no lado oposto onde tinha nascido.
Os outros
traziam as pedras ainda em bruto e ele com o martelo e ferro acabava-lhe os
contornos, definia-lhe as feições e determinava o local onde iriam repousar. Na
periferia da porta, nas agruras do vento norte, nos contrafortes do lado sul ou
nos contornos da janela.
Era
domingo e festa no Senhor da Paz, o padroeiro daquelas redondezas.
Eleutério
tinha desafiado a mulher e dois filhos a virem à festa. Já tinha sido a missa,
procissão e rematação. Este ano o arraial estava abonado e os lances renderam
bom dinheiro para o padroeiro. Tudo desapareceu, até uns tamancos e uma albarda
dum burro que uma mulher ofereceu em paga duma promessa.
Algumas
vacas já tinham sido transacionadas mas ainda faltavam umas três ou quatro que
resistiam aos ânimos dos regatões e à desilusão dos donos. E duas éguas a quem
o comprador tanto desejava, mas o dinheiro não crescia.
Os
habitantes levavam os convidados para almoçarem em suas casas; os outros
romeiros estendiam as mantas à sombra dos carvalhos e depois de abrirem seus
açafates, disfrutavam o que tinham trazido, ovos de cor castanha cozidos, com
cebola, chouriço, presunto e galinha estufada. Tudo acompanhado com boa broa de
milho e centeio e vinho da bota.
Mais logo
será o baile e os ajustes de contas, para quem tem contas atrasadas; o Senhor
da Paz a todos ouvirá e neste terreiro se fará o que tiver de acontecer, gritos
de mulheres, escaramuças e algumas cabeças rachadas, tudo fruto de amores
contrariados e malquerenças de vizinhança por resolver.
José da
Eira aproxima-se do grupo onde estava Eleutério e depois das apresentações
iniciais e cordiais de quem está interessado numa aquisição, fica a saber que a
Casa da Coroa, da Guarda Florestal está prestes a acabar. As suas artes de
pedreiro afamado serão requisitadas para outras bandas, quem sabe pra Vila de
Soajo ou arredores.
De pé, cabelo
penteado ao lado esquerdo e cara lisa, brilhante do sabão da barba, encostado à
sua vara de marmeleiro, conta José da Eira o seu projeto, um moinho de vento,
redondo do cimo ao fundo, como naquelas redondezas nunca se vira antes. Dum
lado estende-se a vista da Várzea à Peneda e ao Olelas. Do outro, Paradela e as
serranias desde Espanha, Lindoso e Amarela até Viana.
Será
Eleutério homem para uma coisa igual?
De pé,
com a mão esquerda caída e a direita a afagar as curvas dos queixos, o cabelo
revolto, franze o sobrolho e vai dizendo para si próprio,
é uma
casa em redondo… espeto oito estacas no chão e faço um circulo. Se todas as
pedras tiverem a mesma altura e largura só lhes acrescento a redondeza… e
depois é subir por ali arriba, deixando espaço para uma porta e duas janelas.
Adivinhando-lhe
os pensamentos acrescenta o outro,
E
escadas no interior para subir ao primeiro andar
Claro,
claro, diz Eleutério. Bem nunca fiz uma coisa assim, mas não sou homem para
recuar. Sou de Riba de Mouro e não volto a cara a um desafio. Eu e os meus dois
ajudantes faremos esse palácio.
Palácio?
Bem, não é um palácio, é antes um mirante do palácio. O palácio é esta serra
toda, cheia de verde, é este azul que nos protege, estes barrancos que nos
escondem e revelam. A serra é o palácio onde sou mais livre e donde grito aos
outros a alegria que tenho de estar vivo.
E o
telhado?
O telhado
fica por minha conta. Virá da Póvoa de Varzim, dizia o contratante, enquanto
muda a vara de marmeleiro da mão esquerda para a mão direita e olha a serra,
desde Outeiro Maior até à Cascalheira. Ainda não sabe, ou finge que não sabe,
porque os mistérios da mente são difíceis de adivinhar, mas é na memória dos
moinhos da Ajuda, em Lisboa que vai buscar todo esse encanto, essa fantasia
prestes a tornar-se realidade. Um olhar que do alto da Ajuda sobrevoe Belém e
atravesse o rio para a outra margem.
MRodas
Sem comentários:
Enviar um comentário
Seja crítico, mas educado e construtivo nos seus comentários, pois poderão não ser publicados. Obrigado.