Eleutério,
acabada a obra na Coroa, Adrão, almoçou, despediu-se do guarda, que entretanto
tinha sido nomeado pelos serviços florestais, disse adeus aos carpinteiros que
no largo construiam as janelas, portas e mobília para a casa e
outros trabalhadores presos ao amanho das obras do quintal.
Arrumou
os poucos trastes que tinha – a mulher e os filhos já tinham levado o resto
para Soajo – e meteu pés ao caminho, em direção à Cascalheira.
Tanto do lado norte, onde ficava a sua aldeia,
como deste lado, a serra era-lhe familiar, as pedras no caminho, as giestas e
tojos, urzes e carrascos, o cheiro das flores aquecidas pelo intenso calor, o
piar dalgum passaroco e o estremecer dum arbusto, perante a fuga dalgum coelho
ou perdiz.
Quem
anda muito tempo sózinho pela serra e a isso não está habituado, vai pela mão
do pensamento que o arrasta para locais reconditos da imaginação e recordações
mais íntimas do ser. É uma forma de o caminhante solitário se esquivar à
solidão da serra e ao esforço do caminho. Essa visita às áreas mais obscuras do
pensamento, para além de fazer o tempo passar, sem dele se dar conta, favorece
a reflexão e o auto-conhecimento.
Para os mais imaginativos, pode descambar em paisagens
tão intimimanete coloridas e impossíveis que só um reparo da razão o pode
trazer de volta à realidade deste mundo adverso e desta serra carregada de
urzes e tojos que se agarram às perneiras das calças trespassando-as de tempo a
tempo. São os tojos que trespassam as calças e os pensamentos, a alma.
Eleutério
tinha-se metido por estes últimos caminhos. Os filhos crescidos, a mulher com
terras para amanhar e dias para trabalhar para fora, a subsistência garantida –
salvo alguma doença má e algum vizinho ruim – que sentido fazia a vida dele
longe da sua família? O que o fazia andar perdido por estas serras, as costas
curvas e as mãos calejadas? A maior parte do tempo sózinho, a falar com as
pedras? Porque fazer casas para os outros e não ter uma casa própria, condigna
e espaçosa? A casa onde viviam, quer dizer, onde vivia a mulher e os filhos era
pequena e sombria, cozinha e uma divisão para duas camas, tinha sido dos pais
da esposa. E lá se criaram todos desde o tempo dos bisavós. Porque não fazia um
intervalo nos seus trabalhos e ia para junto da família e melhorava a sua
própria casa? O que tinha amealhado garantia-lhe uns anos de
descanso.
Porque
tinha saído de Riba de Mouro? Porque viera assentar casa e pé posto em Soajo?
É verdade que a mulher era linda e tinha um
peito farto, umas ancas largas e uns olhos como a lua cheia em noite de S.
João. Aquilo foi um fogo que os ateou e teima em arder, ainda hoje.
A minha Teresa...
Os
soajeiros tinham-no acolhido bem. Segundo diziam, parece que acolhiam melhor os
forasteiros que os da terra. Mas isso eram coisas lá deles. Havia quem
explicasse que era um costume que vinha dos antigos e se enraizara nos hábitos
de todos.
Já tinha passado pela Chã da Porca, Châ dos
Pinheiros, Portela do Galo para os da Várzea e Poulo para os de
Paradela. Caso curioso, como o mesmo local pode ter dois nomes
diferentes, mas prestar-se a confusões.
Diz
um, Vou à Portela do Galo.
Diz
outro, Não vou contigo, que tenho de ir ao Poulo.
Quando
lá se encontrarem ainda podia haver barulho e chamarem-se nomes de zangados,
porque um acusava o outro de mentiroso.
Mas
eu disse a verdade, disse que vinha ao Poulo.
Mas
não disseste que vinhas à Portela do Galo?
E não vim, eu vim ao Poulo.
Estão
a ver a confusão? - pensava ele, a pedir ajuda a um sorriso irónico. A vida tem
tantas destas confusões...
Olhou
em redor e a vista já cansada de ver tanto verde, em Portugal e na Espanha, foi
desviada pela sua preocupação profissional, pedras. Um monte de pedras grandes
e pequenas e de bom corte – pensou para si a sorrir. Aqui é que se podia fazer
um castelo.
Antes
de começar a descer para os Garfos sentiu um ruído e de imediato um leve eriçar
na espinha. Ainda lhe faltava um bom bocado até à Mina Nova.
Não
havia notícia de algum lobo ter atacado um homem. Mas esse receio tinha-se
alojado no mais fundo da alma serrana e havia sempre um estremecimento quando a
hipótese surgia com alguma probabilidade de acontecer. Não que fosse fraco de
braços. Rijos eram eles e com eles tinha partido tanta pedra que se
sobrepusessem, poderia ombrear com as escadas da senhora da Peneda ou fazer
sombra ao Outeiro Maior. Mas um lobo não é apenas um lobo. Um lobo é também
aquilo que eu penso dele. E ouvi tantas histórias de lobos... e nenhum era bom.
Eles atacavam, eles comiam, eles vinham de noite, eles eram os lobisomens.
Sorriu. Bem isso eram histórias antigas que a modernidade não confirmava.
Mas
um lobo ou vive sózinho ou traz outros atrás. Traz fome e quem sabe, lobetes na
toca, para alimentar.
Tal
como ele.
Chegado à vista da Mina Nova, já mais tranquilo, deixou cair os pertences, soprou uma pedra centeia a meia altura e sentou-se, desapertou a bota do vinho, bebeu um golo longo, para sossegar o que durante o caminho tanto o tinha desassossegado.
Voltou
a suspender os pertences ao ombro, levantou-se e passados poucos
minutos nem teve tempo de suspirar, quando a vista se
alegrou, surpreendendo-o,
Tinha
chegado a Paradela.
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