Gostava de te fazer um poema de amor
Que falasse de sol, terra e mar, fogo e seiva, de mim e de ti
Gostava mesmo
Como havia de declinar compromisso e crescimento interior, em todos os tempos e modos
Que falasse de florestas e flores nas rugas do teu corpo
Na volúpia do estertor da alma
Com rios e cordas de ternura e beijos
Sim, como eu gostava de inventar um poema de palavras úteis e sensíveis, quadras, versos, música e danças numa única estrofe, com muitas folhas verdes
E como eu saberia dançar dentro de ti, num mar de anémonas e festas, ondas de posse e partilha, rios de fluídos ternos, êxtase vibrante de amor
Mas não consigo
Não, porra, não consigo evitar esta crueldade que nos ameaça de vida e morte
Não consigo esquecer ou fazer de conta que não vejo
A guerra à minha porta, os sem abrigo, a morte de crianças palestinas e ucranianas, de muitas crianças no mundo
Corpos tenros que nunca hão de amar e já desistiram de correr e brincar. E como suas maes morrem por dentro negando aos olhos o que o útero criou e o coração embalou
Morrem todos sem saber de que morrem
Sem saberem porque morrem
Não há pior morte do que não saber
Porque se tem de morrer
Morrem os mortos com a dor dos vivos
Que também não sabem porque têm de viver. É a morte que desejam, porque a vida os matou vivos
Os matou em vida para que a morte não os torture novamente
Mais tortura
Na água que não há,
na comida que não há
Na esperança que não há
Nem ar ou fogo, ou terra ou mar
Não há mais nada
Nada. Apenas a dança da morte, que de tanto dançar na tv, adormeceu a nossa revolta e indignação
Como queres que te fale de amor?
Para isso é preciso estar vivo, sentir na pele a aragem do teu sorriso
Se estou morto, porque sorrirás tu?
Se morreste comigo porque estarei eu vivo a cantar o amor?
Qual amor?
Não há amor com a morte deitada a meu lado, o escuro fétido, o horror de sentir que morremos porque nos deixamos matar
E nos matam mesmo assim
Eu queria escrever um poema de amor que parasse esta hemorragia
Que dissesse que todo o homem e toda a mulher são meus irmãos
Que todas as crianças são nossos filhos
Que juntos prosseguimos a viagem que vai daqui onde quisermos num caminho sempre por fazer
Queria caminhar com a humanidade em direção ao horizonte com promessas de paz e liberdade
Eu queria ser uma areia viva e brilhante neste deserto de humanidade decente
Mesmo rente ao que a gente sente
Vou escrever o poema de amor
Vou escrever para que saibam que o amor nunca se sabe onde começa e onde acaba
Mas que passa aqui, por mim e por ti, no ranger das horas sumidas de cada dia
No compromisso e respeito
Da atração e desejo
Da verdade e liberdade
Que só amor nos pode salvar
A passar do ontem para o amanhã
O amor é um cavaleiro de ar e vento, de sol e fantasia autêntica de realidade
Que nos abraça e nos leva pela mão
A semear cada semente
Que cresce e diz NÃO.
Afinal, sempre escrevi o poema de amor!
MRodas
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