segunda-feira, 13 de março de 2017

O meu avô Marujo



Tinha umas longas pernas e uns grandes olhos lá bem acima do pescoço que sabiam tudo, de todas as coisas!

- Não há pedra nenhuma desta serra onde não tenha posto os pés!
Com outros habitantes fizeram uma escola na Várzea. Queriam ensinar os filhos a ler.
Gritava pela minha avó:

- Ó Ana! Traz uma manta! Quero esta varanda toda brincada!
E os netos não se faziam desentendidos. Já se desembrulhavam em brincadeiras antes de a manta chegar nas mãos brancas e nos olhos verdes da minha avó.
Ele queria prolongar-se no tempo e ensinava os netos a esfolar uma cabra, a crestar as colmeias, a esperar a rês que descia da serra até ao Corgo, na Várzea.
Sorria quando lhe perguntávamos como as cabras sabiam onde era a casa delas, pois chegadas à porta, arrumava-se cada uma em seu sítio, num cálculo difícil, mas imediato. Não se enganavam. Tinham vagueado pela serra, visto os lobos, escorregado nas lajes, mas agora obtinham o seu prémio: um descanso merecido.
Quando meu avô Marujo, da Várzea, contava as suas histórias verdadeiras – quem as inventava era a minha avó Ana - os seus olhos brilhavam mais e endireitava-se na cadeira, à procura do contexto dos acontecimentos, indiferente à minha pouca idade e ao sorriso complacente da minha mãe:
- ...os de Soajo tinham mandado recado para os lugares. A data estava marcada para o dia de feira. Que fossemos os que pudéssemos. Era preciso mostrar que havia homens em Soajo.[1]
- E não tinha medo, meu sogro?

- Medo toda a gente tem! Coragem, poucos!

Eu brincava com pedrinhas a esgaravatar o terreiro em Ramil, enquanto à minha frente passavam aventureiros, de barrete e varapaus de levar tudo na frente, destemidos a defender as damas e crianças, a justiça e a verdade!
Foi assim que soube que os meus heróis levaram tudo na frente. Por entre tachos e galinhas, porcos e tecidos, pipos e alfaias, tudo aos gritos espavoridos de pânico. Mas... havia uma curva, uns socalcos, onde as mulheres dos perdedores tinham enchido os aventais de pedras, solidárias com os maridos e filhos.

- Ora, começam a chover pedras de todos os lados. Ninguém estava à espera daquilo. Como nos podíamos defender das pedradas com os paus? Toca de recuar...
- Fugiram, meu sogro?- perguntava a minha mãe, levantando a cabeça da costura e pronta a socorrer algum ferido.
- Fugir, não! Recuámos!
- e sorria.
Eu levantei a cabeça do terreiro a espreitar um sorriso maroto e divertido. Ele afagava o queixo e sorria.

- Demos conta deles... mas perdemos com as mulheres!

Deve ter sido por estas alturas que começou a minha admiração pelas mulheres! Valentes, heroicas, em cima dos socalcos, Marias da Fonte, saias negras esvoaçando ameaças, mais duras que as pedras vencedoras!


In ,O ARCOENSE, no 862, de 21 de setembro de 1902:
“No dia de feira houve grossa pancadaria entre uns indivíduos de Prozelo e do Soajo, aí para o Largo da Valeta, chegando alguns a cair ao rio, o que por certo lhes havia de refrear os ímpetos guerreiros. Informam-nos que esta desordem foi consequência de outra que os de Soajo fizeram na romaria da Peneda. Ora, é preciso pôr cobro a estas contendas que, além de darem uma má ideia dos povos deste concelho, muito prejudicam as feiras e romarias. Para o ano muita gente deixará de concorrer à romaria da Peneda com medo a estas exibições selvagens. Aquela romaria não deve deixar de ser convenientemente policiada."
O nº 868, do mesmo jornal de dois de novembro, refere uma desordem ainda maior. Com o título de: "Grande desordem. A vila em estado de sítio. Feridos graves"
A notícia descreve uma nova cena de pancadaria, na feira de gado, provocada pelos de Soajo, que vieram em grande força até à vila. No final, tiveram que bater em retirada. Choveram pedradas e até se ouviram tiros de revólver. "Por momentos julgamo-nos transportados a África, assistindo a um combate entre selvagens", escreve o articulista. A notícia termina referindo que houve imensos feridos, tendo a gravidade de alguns levado ao seu internamento no hospital. Um de Prozelo e outro do Soajo estavam em perigo de vida. O tempo foi passando e já em Braga, pelos meus dezassete anos, aceito o convite dum fim de semana em casa dos pais do meu amigo de estudos e quarto, o Agostinho, de Lavradas, Ponte da Barca. A avó com 90 e tal anos, acamada, mas com um cérebro mais luminoso que as madrugadas de abril, quando soube que era de Soajo, tinha uma história para me contar.
- Eu não sei bem o ano, mas tinha 12 ou 13 anos e fui à feira dos Arcos. Fui com a minha mãe comprar novidades e curiosidades! Mas na verdade só me lembro de ouvir dizer: - Fujam, fujam que vêm aí os de Soajo. Eu não os vi, mas quando ouvi isto, peguei nas minhas sandálias na mão e toca de correr por ali fora, como toda a gente... a fugir. Soube mais tarde que era um rixa com os de Prozelo, mas não sei bem as razões...parece que os de Prozelo se metiam com as mulheres e moças de Soajo, quando vinham à feira ... elas contaram aos homens e eles resolveram tirar satisfações nesse dia! Alguns achavam que os de Soajo eram muito maus, mas eu achava que eles tinham razão...
Obrigado, avó!
Eu ouvia extasiado a confirmação das histórias dos heróis da minha infância. Ali no meio do verde de Lavradas! Afinal o meu avô não inventava as histórias. Isso, quem o fazia muito bem era a minha avó!





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