quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

Oficina poética




Deixo aqui exemplos da minha oficina poética (exagero...um cantinho obscuro da minha imaginação).
O ponto de partida são poemas ou textos de autores conhecidos e publicados, que por algum motivo estético ou formal mais me impressionaram e desafiaram para ...o tal cantinho sombrio!
Por vezes utilizo as palavras dos autores, outras vezes as imagens, mas no final o resultado não tem semelhança alguma. Ou terá?
A primeira sugestão e estímulo foi este bocado do sermão do Padre António Vieira. Gostei tanto do resultado que continuei com outros poetas. Os meus poemas estão espalhado neste blogue, no separador POESIA, mas só agora acrescentei o ponto de partida de cada um.
 Depois fui procurando a confirmação desta procura e encontrei Vitor Moreno*:

La literatura está para ser leída, comprendida, interpretada, imitada ytransformada. Cuando la comprendemos e interpretamos emocional e intelectualmente, estaremos en disposición de interactuar con ella de forma crítica y creativa. Cuanto más interactuemos con ella de forma personal, más exploraremos su territorio, extrayendo de él lo que nos convenga emocional e intelectualmente.
Desde esta perspectiva, disponemos de distintas estrategias para afrontar cualquier tarea de escritura después de haber leído una obra, un cuento, un relato, un ensayo, una obra de teatro o un poema. Lo que deseemos.
Estos instrumentos son la imitación  y la transformación. Para un desarrollo exhaustivo de dichos conceptos-instrumentales remito a la obra de G.Genette, Palimpsestos. La literatura en segundo grado, Taurus, 1989.
El concepto de transcodificación consiste en trasladar a otro código comunicativo el texto literario, sea el del cómic, la pintura, el slogan, la publicidad, la música, la tarjeta postal, etcétera.
En definitiva: escribir partiendo de lo que leemos nos hace ser más conscientes del valor de la experiencia lectora en que nos hemos sumergido y, también, más críticos y creativos.
¿Y más felices? Dicen que la procesión va por barrios.

Vitor Moreno



Gostaria de receber comentários sobre esta oficina, quer dizer... aquele cantinho difícil de entender...
Obrigado.
Manuel Rodas



Sermões
Padre AntónioVieira

Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, tosca, bruta, dura, informe; e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem, primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até amais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afia-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali enruga, acolá recama; e fica um homem perfeito e, talvez um santo, que se pode por no altar”,

in Sermões, vol. V, Porto, Livraria Chardron, Lello&Irmão, Editores, 1907

Sermão

Das montanhas livres que em mim habitam
Arrancas a imagem tosca, bruta, dura, informe;
Desbastas, tomas o maço,
e o cinzel da tua mão surge em mim,
a tecer a sombra do anjo que há-de ser homem.
Primeiro corpo, depois fala, sonho, obra e grito.
Vens tu ondear-me os cabelos e a testa,
rasgar os olhos,
afiar o nariz,
abrir a boca,
avultar as faces.
Torneio-te o pescoço,
estendo os braços,
espalmo as mãos,
divido os dedos,
deslaço-te os vestidos;
Aqui despregas,
ali enrugas,
acolá recamas…
e ficamos perfeitos, santos e livres
no altar que há em nós!

Manuel Rodas



O retrato de Mónica,
Sophia de Mello Breyner Andresen
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Na vida, conheci muitas pessoas parecidas com Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seríssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une é justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.

Outra Mónica, Sophia!

Magra de ossos, boca firme, vontades de mar
Nariz sibilino, apontando aos olhos a travessia
Das marés e tempestades de cada dia.

À poesia e ao amor deste filhos
Aos filhos deste dias e céus de luar
Estrelas e geometria, espumas por rendar.

A todos deste braçadas de cuidados
Sonhar novas ilhas e continentes a marear,
Gentes sem alma, santidade, mundo por acabar.

Entre deus e ti, mulher, há um pacto maravilhoso:
Ele fez o mundo e descansou antes de terminar,
Porque sabia que tu o havias de continuar!


MRodas,




Adeus Português, Alexandre O'Neill

Nos teus olhos altamente perigosos 
vigora ainda o mais rigoroso amor 
a luz dos ombros pura e a sombra 
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo 
à roda em que apodreço 
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila 
quase medita
e avança mugindo pelo túnel 
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira 
onde passo o dia burocrático 
o dia-a-dia da miséria 
que sobe aos olhos vem às mãos 
aos sorrisos
ao amor mal soletrado 
à estupidez ao desespero sem boca 
ao medo perfilado 
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca 
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido 
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa 
puríssima da madrugada 
mas da miséria de uma noite gerada 
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós 
traz docemente pela mão 
a esta pequena dor à portuguesa 
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces 
esta roda de náusea em que giramos 
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual 
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas 
e o cemitério ardente 
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio 
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia 
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento 
digo-te adeus 
e como um adolescente 
tropeço de ternura 
por ti .
O amor de Alexandre

Na noite mais densa de luar
Os nossos olhos turvaram-se de rigoroso amor.
Tu podias ficar presa comigo ao dia
Ajudando-me a incendiar
Todas as promessas de Abril florido.

Sim, podias ficar sentada
Na minha cadeira inventada
Onde a liberdade subia dos olhos às mãos
E uma promessa de amor bem soletrado
sem medo, alegre, se descobria.

Sim, podias ficar nesta cama comigo
Acordada na puríssima madrugada
Ensinar-me a prolongar de dia
As sementes contra a miséria desigual
violenta, brutal, no meu país!

Sim podias ficar livre comigo
E com a luminosa manhã doce de Abril
Ver os cravos nas espingardas a sorrir
Derrotar a grande negra besta dor vegetal.

Sim, tu merecias esta cidade
Esta promessa luminosa
De sorrirmos por aí abraçados
A outros como nós, desiguais
Num constante sentido e razão
De rituais bem aventurados.

Sim, merecias esta cidade aventureira
Onde o amor canta o fado com a mesma intensidade
Terna e lancinante
Como o adolescente morre de saudade
Por ti!

Manuel Rodas







O Amor morto,
Sophia de Mello Breyner Andresen

De um Amor Morto
De um amor morto fica
Um pesado tempo quotidiano
Onde os gestos se esbarram
Ao longo do ano

De um amor morto não fica
Nenhuma memória
O passado se rende
O presente o devora
E os navios do tempo
Agudos e lentos
O levam embora

Pois um amor morto não deixa
Em nós seu retrato
De infinita demora
É apenas um facto
Que a eternidade ignora


O amor morto de Sophia

Do amor morto fica a saudade do quotidiano
Onde os anos se diluem nos gestos e cheiros
Ou na imaginação breve da tua memória.

Do amor morto, ou quase
O passado volta agora
Quando sorris e me olhas de frente!

Por mais que te diga: Vai embora!
Voltas sempre no retrato da saudade
Nos navios do tempo presente.

Ficou em mim o véu do amor morto
Uma promessa que não murchou
Uma eternidade que não se ignora!


Ó amor morto,
Porque não morres
E teimas chorar em mim?

Manuel Rodas






Sabe bem olhar
Fernando Pessoa

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar pra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há de dizer.
Fala: parece que mente
Cala: parece esquecer

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
Pra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente!

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar..


É no teu olhar, olhando...
Que a aragem do sorriso, sorrindo
Encontra em mim,
O sentir, sentindo
A aragem arejando
O riso, rindo
O desejo, desejando!

Esse teu jeito...
De olhar sorrindo,
Folhas folheando,
Beijos, beijando,
Braços, abraçando,

Abre-me o teu mundo…olhando!

Manuel Rodas



Mar Português,

Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma nao é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.













* Vitor Moreno
Profesor, escritor y crítico literario. Es habitual colaborador en prensa, radio y
revistas de educación y literatura. Ha publicado infinidad de libros y artículos
en revistas especializadas sobre enseñanza y aprendizaje de la literatura, lec-
tura, escritura, oralidad y temas relacionados con el desarrollo de la compe-
tencia lingüístico-literaria en la adolescencia. Imparte cursos de formación al
profesorado de Primaria, Secundaria, Bachillerato y Graduados Universitarios

en distintas instituciones.
Ó mar

O mar é azul, é salgado,
É profundo
e distante espelho do céu.
Há mar
Quando sonho.
Há mar
quando o filho chora
e a mãe reza.
Há mar
Na concha da minha mão,
Quando fecho os olhos e fico a escutar.
Há mar
Quando te ouço                                          
Te beijo e te cheiro.
minha alga secreta!
Quando a tua maré me sobe os rochedos
E desliza na minha praia
E eu preencho os teus silêncios
com gritos de gaivota molhada:
- Para que fosses minha,
Quanto suor ficou por limpar
Quantos dos teus ais
São lágrimas do meu mar!
Quero passar além da dor.
Dar ao mar o perigo e o abismo meu,
E nele espelhar o paraíso do teu!

Manuel Rodas








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