A minha filha teve como
trabalho voluntário ajudar na distribuição de livros escolares usados. Uma vez
por semana retirava uma tarde do seu conturbado horário e lá ia ela, calçada
abaixo, até ao depósito da Caritas. Levou livros usados e trouxe livros escolares
usados. Apenas lhe faltava o de Inglês.
Procuramos na biblioteca
municipal, na da escola e …nada!
Havia livros usados de muitas
cores e feitios, vários anos escolares, editoras e autores, uns com as marcas
do tempo – de estudo e trabalho, ou apenas do desgaste nas mochilas? – mas de
inglês do 11º ano …nada!
Comentamos este estranho fato,
durante as compras no supermercado, na arrumação nas prateleiras, durante a
confeção das refeições, à mesa, antes de ir prá cama, ao levantar e não
encontramos resposta para esta dificuldade.
Resolvemos então procurar na
Net.
Apareciam alguns (!), mas
poucos, o que confirmava a escassez deste livro no mercado de usados e mais
fazia aumentar as nossas interrogações.
Havia vários preços, uns mais
caros e outros mais baratos, mas a distância não ajudava a tomar decisões, pois
ir de Lisboa a Faro trazer um livro de inglês saía muito caro e a época de
praia já tinha terminado.
Resolvi então telefonar para o
mais barato, 5 euros, na Amareleja!
Uma senhora muito simpática,
do lado de lá. À medida que íamos falando, eu, do lado de cá, acrescentava um pormenor
à perceção da sua silhueta.
Sim senhora (eu vesti-a de
preto), tinha lá o livro que era da filha ( altinha), agora já não precisava,
uma vez que tinha entrado na faculdade em Lisboa (rosto entristecido e olhos
muito brilhantes).
Eu estou interessado no livro,
pois a minha filha precisa dele. Fica-me muito caro ir à Amareleja!
Pois, ela compreendia (mãos
grossas e de trabalho, com um anel na mão esquerda, cicatriz na mão direita no
dedo mindinho), mas não podia fazer nada, a não ser mandá-lo pelo correio e
teria de ser eu a pagar o transporte, pois o livro já era muito barato ( cabelo
preto, preso atrás num picho).
A filha na próxima semana,
quando fosse a casa podia trazer-mo, mas ela não tinha ainda a certeza se viria
neste fim-de-semana ou no próximo (blusa preta, com cinco botões brilhantes, e
umas rendinhas na gola e um fio de ouro no pescoço, com pequenas marcas de
rugas nos cantos dos olhos. Peito saliente!). Ela agora demorava muito a ir a
casa. Tinha de estudar…
Pois…
Perguntou-me onde morava eu.
Aqui, nos arredores de Lisboa,
em Oeiras.
Que esperasse… pois havia a
possibilidade do António, que era camionista, trazer-me o livro e entregá-lo à
irmã que trabalhava em Cascais e assim eu podia ir lá buscá-lo (saia preta, com
um aventalzinho preto e fios de linha pendentes, agarrados nas margens para não
se estatelarem no chão).
Parece me uma excelente ideia.
Dá-me o contato da irmã, que trabalha em Cascais para eu comunicar com ela?
Era a Neuzinha! Que tomasse eu
nota do nº de telemóvel (cintura a desaparecer da forma do corpo e pernas
redondas, sapato preto).
Fica combinado! Porque vende o
livro tão barato?
Ora, a vida custa a todos e
ela já não precisava do livro. E na Amareleja dificilmente alguém o poderia
comprar, porque não sabiam que ela tinha um livro de Inglês para vender. Poucas
pessoas têm net na Amareleja (Está de pé, com uns óculos redondos a
ensombrar-lhe a face).
Mas cinco euros também pouca
ajuda pode dar…
Ora, a vida está cara e o
marido tinha emigrado para fora, para Alemanha e ainda não tinha arranjado um
emprego fixo, pelo que toda a ajuda era boa, tanto mais que a filha em Lisboa
gastava muito dinheiro (dona de casa?)
A senhora é dona de casa?
Dona de casa? Ah! Quem dera.
Tenho uma pequena loja de limpeza e arranjo de roupas. Ganha-se pouco, mas vai
dando…
E quantos filhos tem?
Ora, tenho três. Um já está na
Alemanha com o pai. O outro já casou e vive no Barreiro. Agora só falta estudar
a mais nova. Os irmãos não quiseram estudar… e o senhor o que faz?
Estou reformado.
Teve sorte!
Alguma, mas neste país não é
difícil ter sorte! O que é difícil é arranjar quem nos governe bem…
Pois é, pois é! Olhe, seja o
que deus quiser! Eu mando-lhe o livro e depois paga à Neuzinha, sim?
Muito obrigado!
De nada! Obrigado!
Tá, é a Neuzinha?
Quem fala?
Sou eu, queria combinar
consigo por causa do livro de Inglês…
Ah! Sim, pode vir à Avenida 25
de Abril na próxima 2ª feira?
Posso, claro… e onde?
Venha ao Banco. Conhece?
Sim, sim…
Pergunte por mim aos meus
colegas.
Obrigado, lá estarei
…
A Neuzinha era linda. Tal e
qual tinha imaginado a irmã, no telefonema. Alta, esguia, cabelo preto atado
atrás, um vestido azul suave e brilhante, um olhar de planície com muito sol
naqueles lábios rubros de nascentes prometidos e poentes confirmados! Seriam
gémeas?
Olhámo-nos, sorrimos, trocamos
as mãos do dinheiro com as do livro, voltamos a sorrir e caminhamos de costas
em direções opostas.
Grande Neuzinha!
Quando entreguei o livro a
minha filha, ela sorriu e distante desta aventura, voltou mais tarde, agradeceu
com os olhos e disse:
-Olha, encontrei uma carta
aqui dentro. Vê lá o que diz! – E deu-ma!
Sentei-me a lê-la.
Era uma carta de quatro
páginas, uma folha A4 dobrada ao meio.
O Jorge, assinava no fim e
dizia mais ou menos isto:
Custava-lhe deixar a mãe
sozinha, na Amareleja, mas finalmente iam poder encontrar-se em Lisboa e
viverem juntos, o amor da vida deles. Sabia que a sua amada, a quem tratava por
Isabel, também o desejava, mas tinham de manter o segredo, pelo menos até ela acabar
o curso. Três anos passavam depressa, ele podia tentar arranjar um emprego,
pois estava disposto a fazer tudo para viver com ela. Nas férias talvez ele
pudesse ir para Inglaterra trabalhar nos hotéis que dava para amealhar para as
despesas do ano, mas ela tinha de voltar para a mãe. Tudo isto com muito amor,
muita ternura e … muita aventura!
E se eu avisasse a senhora lá
no Alentejo sobre os planos da filha? Ou pelo menos fosse a correr, marcar um
encontro e confessar à Neuzinha, o que se passava?
(Como vou acabar este texto?
Versão 1)
Tocou o telefone. Atendo.
-O senhor ainda tem a casa
para alugar? Sim…Sou uma estudante, vim da Amareleja estudar para Lisboa e
queria viver com o Jorge…
Fiquei, cúmplice, a
desejar-lhes muita sorte!
(Versão 2)
A Neuzinha contou tudo. Como
era cúmplice e tinha empurrado o primo para os braços da Isabelinha e como
ocultava a vida dupla do pai na Alemanha.
(Versão 3)
A Neuzinha tinha tido um caso
com o pai da Isabel e ele resolveu ir para a Alemanha, a tentar afastar-se
dela.
Versão 4
A Neuzinha descreveu-me a mãe
da Isabel.
Desde que o primeiro filho
morreu num acidente de carro, ela nunca mais levantou o luto. Uma das razões
porque o marido foi para a Alemanha era porque lhe era muito difícil suportar a
dor da mulher.
A irmã era uma mulher muito
bonita, altura média, magra e de cabelos pretos. Um corpo bem feito. Ainda hoje
com quarenta anos tinha uma face sem rugas. Usava uns óculos redondos para
esconder a mágoa dos olhos. Muito organizada, trabalhadora, tinha um fraquinho
pelo pároco. Era uma sonhadora e acreditava que um dia ainda ia encontrar o
filho, algures lá no céu! Falava dele como se estivesse vivo!
- Pai, o que dizia a carta?
- Nada de especial, apenas uma carta de amor!
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