terça-feira, 6 de outubro de 2015

O livro de inglês



A minha filha teve como trabalho voluntário ajudar na distribuição de livros escolares usados. Uma vez por semana retirava uma tarde do seu conturbado horário e lá ia ela, calçada abaixo, até ao depósito da Caritas. Levou livros usados e trouxe livros escolares usados. Apenas lhe faltava o de Inglês.
Procuramos na biblioteca municipal, na da escola e …nada!
Havia livros usados de muitas cores e feitios, vários anos escolares, editoras e autores, uns com as marcas do tempo – de estudo e trabalho, ou apenas do desgaste nas mochilas? – mas de inglês do 11º ano …nada!
Comentamos este estranho fato, durante as compras no supermercado, na arrumação nas prateleiras, durante a confeção das refeições, à mesa, antes de ir prá cama, ao levantar e não encontramos resposta para esta dificuldade.
Resolvemos então procurar na Net.

Apareciam alguns (!), mas poucos, o que confirmava a escassez deste livro no mercado de usados e mais fazia aumentar as nossas interrogações.
Havia vários preços, uns mais caros e outros mais baratos, mas a distância não ajudava a tomar decisões, pois ir de Lisboa a Faro trazer um livro de inglês saía muito caro e a época de praia já tinha terminado.
Resolvi então telefonar para o mais barato, 5 euros, na Amareleja!
Uma senhora muito simpática, do lado de lá. À medida que íamos falando, eu, do lado de cá, acrescentava um pormenor à perceção da sua silhueta.
Sim senhora (eu vesti-a de preto), tinha lá o livro que era da filha ( altinha), agora já não precisava, uma vez que tinha entrado na faculdade em Lisboa (rosto entristecido e olhos muito brilhantes).
Eu estou interessado no livro, pois a minha filha precisa dele. Fica-me muito caro ir à Amareleja!
Pois, ela compreendia (mãos grossas e de trabalho, com um anel na mão esquerda, cicatriz na mão direita no dedo mindinho), mas não podia fazer nada, a não ser mandá-lo pelo correio e teria de ser eu a pagar o transporte, pois o livro já era muito barato ( cabelo preto, preso atrás num picho).
A filha na próxima semana, quando fosse a casa podia trazer-mo, mas ela não tinha ainda a certeza se viria neste fim-de-semana ou no próximo (blusa preta, com cinco botões brilhantes, e umas rendinhas na gola e um fio de ouro no pescoço, com pequenas marcas de rugas nos cantos dos olhos. Peito saliente!). Ela agora demorava muito a ir a casa. Tinha de estudar…
Pois…
Perguntou-me onde morava eu.
Aqui, nos arredores de Lisboa, em Oeiras.
Que esperasse… pois havia a possibilidade do António, que era camionista, trazer-me o livro e entregá-lo à irmã que trabalhava em Cascais e assim eu podia ir lá buscá-lo (saia preta, com um aventalzinho preto e fios de linha pendentes, agarrados nas margens para não se estatelarem no chão).
Parece me uma excelente ideia. Dá-me o contato da irmã, que trabalha em Cascais para eu comunicar com ela?
Era a Neuzinha! Que tomasse eu nota do nº de telemóvel (cintura a desaparecer da forma do corpo e pernas redondas, sapato preto).
Fica combinado! Porque vende o livro tão barato?
Ora, a vida custa a todos e ela já não precisava do livro. E na Amareleja dificilmente alguém o poderia comprar, porque não sabiam que ela tinha um livro de Inglês para vender. Poucas pessoas têm net na Amareleja (Está de pé, com uns óculos redondos a ensombrar-lhe a face).
Mas cinco euros também pouca ajuda pode dar…
Ora, a vida está cara e o marido tinha emigrado para fora, para Alemanha e ainda não tinha arranjado um emprego fixo, pelo que toda a ajuda era boa, tanto mais que a filha em Lisboa gastava muito dinheiro (dona de casa?)
A senhora é dona de casa?
Dona de casa? Ah! Quem dera. Tenho uma pequena loja de limpeza e arranjo de roupas. Ganha-se pouco, mas vai dando…
E quantos filhos tem?
Ora, tenho três. Um já está na Alemanha com o pai. O outro já casou e vive no Barreiro. Agora só falta estudar a mais nova. Os irmãos não quiseram estudar… e o senhor o que faz?
Estou reformado.
Teve sorte!
Alguma, mas neste país não é difícil ter sorte! O que é difícil é arranjar quem nos governe bem…
Pois é, pois é! Olhe, seja o que deus quiser! Eu mando-lhe o livro e depois paga à Neuzinha, sim?
Muito obrigado!
De nada! Obrigado!

Tá, é a Neuzinha?
Quem fala?
Sou eu, queria combinar consigo por causa do livro de Inglês…
Ah! Sim, pode vir à Avenida 25 de Abril na próxima 2ª feira?
Posso, claro… e onde?
Venha ao Banco. Conhece?
Sim, sim…
Pergunte por mim aos meus colegas.
Obrigado, lá estarei
A Neuzinha era linda. Tal e qual tinha imaginado a irmã, no telefonema. Alta, esguia, cabelo preto atado atrás, um vestido azul suave e brilhante, um olhar de planície com muito sol naqueles lábios rubros de nascentes prometidos e poentes confirmados! Seriam gémeas?
Olhámo-nos, sorrimos, trocamos as mãos do dinheiro com as do livro, voltamos a sorrir e caminhamos de costas em direções opostas.
Grande Neuzinha!
Quando entreguei o livro a minha filha, ela sorriu e distante desta aventura, voltou mais tarde, agradeceu com os olhos e disse:
-Olha, encontrei uma carta aqui dentro. Vê lá o que diz! – E deu-ma!
Sentei-me a lê-la.
Era uma carta de quatro páginas, uma folha A4 dobrada ao meio.
O Jorge, assinava no fim e dizia mais ou menos isto:
Custava-lhe deixar a mãe sozinha, na Amareleja, mas finalmente iam poder encontrar-se em Lisboa e viverem juntos, o amor da vida deles. Sabia que a sua amada, a quem tratava por Isabel, também o desejava, mas tinham de manter o segredo, pelo menos até ela acabar o curso. Três anos passavam depressa, ele podia tentar arranjar um emprego, pois estava disposto a fazer tudo para viver com ela. Nas férias talvez ele pudesse ir para Inglaterra trabalhar nos hotéis que dava para amealhar para as despesas do ano, mas ela tinha de voltar para a mãe. Tudo isto com muito amor, muita ternura e … muita aventura!
E se eu avisasse a senhora lá no Alentejo sobre os planos da filha? Ou pelo menos fosse a correr, marcar um encontro e confessar à Neuzinha, o que se passava?

(Como vou acabar este texto? Versão 1)
Tocou o telefone. Atendo.
-O senhor ainda tem a casa para alugar? Sim…Sou uma estudante, vim da Amareleja estudar para Lisboa e queria viver com o Jorge…
Fiquei, cúmplice, a desejar-lhes muita sorte!

(Versão 2)
A Neuzinha contou tudo. Como era cúmplice e tinha empurrado o primo para os braços da Isabelinha e como ocultava a vida dupla do pai na Alemanha.
(Versão 3)
A Neuzinha tinha tido um caso com o pai da Isabel e ele resolveu ir para a Alemanha, a tentar afastar-se dela.
Versão 4
A Neuzinha descreveu-me a mãe da Isabel.
Desde que o primeiro filho morreu num acidente de carro, ela nunca mais levantou o luto. Uma das razões porque o marido foi para a Alemanha era porque lhe era muito difícil suportar a dor da mulher.
A irmã era uma mulher muito bonita, altura média, magra e de cabelos pretos. Um corpo bem feito. Ainda hoje com quarenta anos tinha uma face sem rugas. Usava uns óculos redondos para esconder a mágoa dos olhos. Muito organizada, trabalhadora, tinha um fraquinho pelo pároco. Era uma sonhadora e acreditava que um dia ainda ia encontrar o filho, algures lá no céu! Falava dele como se estivesse vivo!

- Pai, o que dizia a carta?
- Nada de especial, apenas uma carta de amor!







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