Era
trabalhador estudante e apenas lhe faltava a aprovação a Etologia, para
terminar o curso, em que tardiamente se tinha inscrito. Gostava de animais no zoo e na televisão, mas estudar os seus
comportamentos em esquemas como se fossem um sistema elétrico... era demais.
Ainda hoje quando
se pergunta como conseguiu ultrapassar este obstáculo, sorri.
O dia estava
chuvoso e as núvens carregavam os ombros dos que iam trabalhar. As filas de
trânsito refletiam no asfalto as luzes dos travões e dos piscas. À frente havia
uma discussão entre dois condutores, após um choque violento entre dois carros,
num cruzamento. Mais atrás buzinavam.
Sentaram-se.
A professora pediu o esquema da gaivota prateada. As perguntas eram mais que as
respostas e o tempo passava. As hesitações e dúvidas faziam fila mesmo por baixo do cabelo, com ligação directa à garganta, que teimava em engolir
em seco. Um chumbo em perspectiva? Pelos seus cálculos o interrogatório estava
num impasse. 50% de probabilidades para cada lado. Não! Ele tinha de arriscar.
Ele tinha um plano B.
-Professora,
essa questão faz-me lembrar as vacas na minha terra.
A professora
levantou os olhos do esquema, olhou-o de frente e não conseguiu descobrir o
esquema explicativo deste comportamento. Absurdo?
- Donde é
que o sr. é?
- Soajo!
A professora
fez um ah! prolongado, surpreendido, alisou os cabelos negros com a mão esquerda
e com a outra tirou os óculos, pousou-os na secretária e afastou o esquema da
gaivota prateada, semi aberta, unhas vermelhas, lisas.
Aquele
vermelho fez-lhe lembrar o acidente. Teria já chegado a ambulância? Haveria
mortos? Como a vida era difícil neste labirinto da cidade. Precisava voltar a
Soajo.
De olhos
semicerrados, hesitantes entre a dúvida, a simpatia e a curiosidade, a professora
perguntou:
-E o que
fazem as vacas na sua terra?
Ah!
Sim, o plano estava a resultar. Agora quem sabia era ele e as perguntas não
tinham o caráter avaliativo, mas pretendiam apenas responder à curiosidade da
etóloga. Sorria interiormente. Já não era o aluno a ser avaliado. Era ele que
estava no holofote dela. E contou como as vacas chegadas a março, abril subiam à serra, na procura de pastos verdes, ares frescos e novos horizontes. Era como regressar às origens a fruírem a liberdade que haviam cedido temporariamente nos restantes meses. Em setembro regressavam, com filhos, barriga cheia e novas ideias para ultrapassarem o frio inverno. Como elas desenhavam um mapa dos locais onde tinham mamado, que perdurava até à morte e a ele permaneciam fiéis e de como o partilhavam, ano após ano, com os seus donos, que sabiam onde as procurar. Era um pacto animal/homem, que a ambos protegia. Como se organizavam na defesa contra o lobo, como, como… as batidas, o fojo, as brandas… muitas coisas, aprendidas na serra e relembradas vezes sem conta em conversas solitárias. Foi num ímpeto imparável:
- De lá, vê-se o mundo todo!
A aluna ouvia e deu por si a desejar conhecer as vacas, as serras, as águas cristalinas e aquela sensação de liberdade que os serranos tão bem conhecem.
Nenhum dos dois sabia ainda, como aquele exame seria
tão determinante no futura entre os dois.
Agora, sorriam apenas!
Sorriam!
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