sábado, 8 de fevereiro de 2020

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É estranho, nesta semana o blogue teve mais leitores na Ucrania, do que no Brasil.

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O diretor executivo



O diretor executivo


Teresa TsingTao de braço esticado, desviou o olhar  do Farol da Guia, puxou para si um apontamento da última reunião do Conselho Administrativo e leu:
- a entrada em funcionamento das duas delegações; 
- o financiamento a 10 anos, para regularizar o crédito anteriormente concedido;
- a reorganização dos serviços da empresa com a criação da direção comercial e loja online;
- a apresentação, pela primeira vez, de saldo positivo. 
Recordou o que o diretor executivo dissera na reunião: a empresa tinha de se libertar do ambiente demasiado influenciado pelo passado. A empresa, se queria ter uma dimensão global, teria de pensar globalmente. Tinha de introduzir os mais modernos métodos de gestão e planeamento estratégico. Não podíamos ir para  o mundo global, com um caderno de apontamentos e um gravador na mão. A empresa não poderia estar condicionada por imprevistos. Todos eram responsáveis pelo sucesso e êxito e, portanto, todos tinham de “vestir a camisola” da empresa, tinham de ser uma equipa e cada um orgulhar-se dos sucessos de todos. O destino não podia ser uma fatalidade, mas sim uma possibilidade, contrariada ou confirmada pelas nossa vontade e consciência de existir. Estes eram os novos desafios num mundo global, altamente competitivo.
Apesar de ela não concordar totalmente, pois desconfiava dos resultados e pressupostos do novo liberalismo, bem conhecia o que significavam os “colaboradores”, não se via a comer hambúrgueres, ou beber cerveja todos os dias, mas apesar disso, sorriu a imaginar-se a passear em Nova Iorque ou em Londres.
Sem se ter apercebido, a mão esquerda descaiu ligeiramente e pousou no colo. Só depois de ter mentalmente recordado a reunião, tomou consciência que a mão se fixava no ventre e teimava em não sair de lá. Foi nessa altura que teve um pressentimento. Seria possível? Não podia ser...
Apenas horas mais tarde, já deitada na sua cama, quando fechou os olhos, pode retomar as preocupações que tivera no escritório. Estaria grávida? Fez e refez cálculos, mas não chegou a nenhuma conclusão. 
Se estivesse, como lidar com a situação? Iria fazer o teste de gravidez e logo se veria. Nunca tivera  a oportunidade de pensar ou desejar ser mãe. O estilo de vida, as exigências do trabalho e a história pessoal nunca lhe deixaram nem tempo, nem vontade de pensar nisso.
Nos dias posteriores o volume de trabalho aumentara na empresa e só na semana seguinte soubera o resultado, grávida de dois meses. 
Todos os dias revia as suas decisões. Seria rapaz ou menina? Iria informar o pai da criança? Poderia contar com o seu apoio? Como reagiria ele? 
Ela bem sabia que ele não poderia fazer grande coisa, a não ser, dar-lhe uma pequena parte da sua vida, alimentar-lhe alguns sonhos, algumas prendas e quem sabe, talvez um pouco de amor. Era, provisoriamente, diretor da empresa, casado, pai de um rapaz, uma família estável e socialmente valorizada na comunidade. O que acontecera durava já há dois anos. Ela nunca pedira nada e ele nada prometera. Aquela relação preenchia o vazio que sentia desde que os pais tinham falecido, prematuramente. Ficara só, mas a força de vontade de prosseguir a vida, o trabalho e um pequeno grupo de amigos era tudo que lhe restava. 
Nem se lembrava muito bem como acontecera. Ela demorava-se no trabalho, tentando responder às exigências do diretor, com docilidade, sempre disponível para a empresa, a salvaguarda do seu posto de trabalho, as reuniões até tarde, as deslocações no território, mas o que precipitou tudo foi aquela viagem, dois anos antes, a Cantão.
Foi um olhar de fim de tarde, um sorriso convidativo, uma mão que descaiu no intervalo dum chá, muita solidão e o desejo de serem amados e... pronto. Que mais é preciso para o amor acontecer?
Os encontros foram fluindo, quer no escritório, quer em casa dela. 
Ele entrava, olhava-a a sorrir, afagava os cabelos, puxava-a para si, os corpos quentes e húmidos gritavam a comemoração do amor desde o princípio da humanidade, desprendiam-se, voltava a olhá-la a sorrir, afagava-lhe os cabelos, afastava-a de si, levantava-se, vestia-se, despedia-se com um beijo nos lábios ainda húmidos e quentes e ... saía. Raramente havia confidências sobre a sua vida particular e muito menos sobre o trabalho. Também não era preciso, pois ela sabia tudo, ou quase tudo, sobre a empresa.
Sempre lhe dera prendas, mas ultimamente, ele trazia-lhe prendas caras, adornos, colares, anéis, medalhões, alfinetes, brincos, onde predominavam as jóias, o ouro e, raramente, a prata. Ela podia ver nos embrulhos a origem da aquisição da maior parte das prendas,  Hotel Lisboa. Seria ele jogador? Teria sorte no jogo e azar no amor? Ou o contrário? 
Ela sorria, beijava-o agradecida, mais pela atenção e o amor que lhe dedicava, do que pelas jóias, exceto aquele anel com o nome dela gravado, Teresa, o qual usava frequentemente.
Sorria a imaginá-lo a entrar na ourivesaria, a escolher as peças, a pensar nela, pagar e sair, comprometido com a prova da sua traição. Sorriam ambos, quando ela punha ao pescoço os colares, ou nos dedos os anéis. 
Ele tinha um jeito especial para a convencer que eram prendas, provas de amor e não recompensas, aliás, ele tinha um jeito especial para atingir o que pretendia. Não lhe dizia que a amava, mas fazia-lho sentir. Ela retribuía com um sorriso de fino recorte, sugestivo, agradecida, mas não convencida. Havia algo dentro dela que não se desprendia e não a deixava  ir a correr, de braços abertos, para ele. Não poder imaginar uma família com ele e ser alternativa à esposa não a deixava confortável. Ela receava que um dia, ele a abandonaria, mas não sabia que era precisamente isso que o desafiava, redobrando de cuidados e presentes, numa afirmação do desejo de permanecer. As hesitações e dúvidas dela mais reforçavam o desejo de conquista, de posse e permanência. Ao contrário da esposa, sentia que não era um território definitivamente conquistado. Era necessário revalidar esse compromisso e esse desejo frequentemente. E ela permitia-lhe essa excitante cumplicidade perversa duma relação extraconjugal.
E quanto mais a tinha, mais ele sentia que não a podia ter. Ou porque ela lhe fugia, escorregadia e esquiva, ou porque a sua situação familiar e profissional não lho permitiam.
No escritório, a relação entre ambos era a que vai do presidente executivo, embora provisório, para a secretária, diálogos restritos, orientações precisas e nada de galanteios ou exageros que os pudessem denunciar.
Quando o queria abraçar, ela dizia, amanhã vou ficar em casa. 
Ele sorria. 
Quando ele a queria beijar, dizia, amanhã vou ao jardim, Teresa! 
Ela sorria sempre!
Assim se passaram dois anos. Mas agora estava grávida. 
Ainda por cima ele iria mudar a residência para San Wui,  uma pequena cidade entre Macau e Cantão, para a inauguração duma sucursal da empresa. Ela estranhou não ser convidada para o acompanhar nas novas funções. Também não sabia muito bem se queria ir e por isso, não lhe disse nada. Ficaria na empresa e guardaria o segredo para si. O que sempre imaginara, veio a confirmar-se.
Teresa TsingTao  tinha anos e anos de prática de decisões difíceis. Foi no regresso duma viagem a Hong Kong e na solidão de sua casa, que tomou a mais difícil decisão da sua vida, seria mãe solteira! Sim, se não o podia ter a ele, havia de ser mãe dum filho dele, que lhe lembrasse todos os dias quão intenso e efémero tinha sido aquele encontro entre duas pessoas que tudo faziam para esconder o seu amor.
Assim que ele souber, não vai querer assumir a sua responsabilidade, vai afastar-se, ou afastar-me a mim, que dá na mesma coisa - assim pensava ela na solidão acompanhada agora pelo fruto da sua aventura.
......
Não eram muito conhecidos os motivos porque Susana Pardal entregou o ofício de despedimento do Jardim de Infância onde trabalhava, em Portugal. As colegas especulavam, as funcionárias olhavam de lado, tentando compreender a razão desta decisão. A direção da Santa Casa da Misericórdia ainda fez algumas perguntas, tentando apurar se havia algum mal entendido que pudesse ser remediado, ofereceu-lhe a deslocação para outro Jardim de Infância, mas nada a fazia demover. Iria trabalhar num jardim de Infância, em Macau e era para lá que queria ir. O pai tinha falecido no ano anterior e a mãe aceitava as decisões da filha, tentando compreender, mas sem a questionar demasiado, evitando-lhe o embaraço de respostas difíceis ou impossíveis. 
A sua integração em Macau não foi difícil, embora ela considerasse que era um processo na sua vida e como tal...evolutivo.
O Jardim de Infância distribuía a sua intervenção entre os cuidados e assistência e a ação pedagógica e nesse aspecto Susana Pardal sentia-se à vontade. O trabalho com os pais era uma das prioridades na Escola e desde cedo começou a reparar no ar dum pai que, apesar de ausente, transmitia força e energia e que, regularmente, ia entregar o filho na escola. Tinha um olhar que convidava a entrar ...
Mas Susana Pardal não estava tranquila nessa matéria. Não era para isso que tinha ido para Macau. Queria iniciar uma nova etapa na sua vida, viajar e conhecer outras terras distantes exóticas e sedutoras. Macau era um bom lugar, como ponto de partida para novas viagens! Essa convicção era ainda mais reforçada cada vez que vinha a Portugal, de férias.
O tempo foi passando e já no seu 3º ano foi com surpresa que um dia disse a si própria, e se eu adotasse uma criança, aqui nesta terra de que tanto gosto?
Balanceou os prós e os contras, viu os inconvenientes e as vantagens e não chegou a conclusão nenhuma racional. Independentemente doutras razões, sentia um apelo para se dedicar a uma criança e cada dia mais a emoção dessa decisão aumentava na sua alma. Ser mãe! Ser educadora e ser mãe! Porque não? Tinha tanto para dar e ajudar a felicidade dum filho.
Depois dum ano de espera, foi com enorme surpresa que recebeu um telefonema, com carácter de urgência do Serviço Social. No dia seguinte, teria de tomar uma decisão rápida. Não dormiu nessa noite. Foi passar em revista o quarto do bebé!
Ainda bem que já tinha adquirido o essencial para os cuidados prioritários. A roupinha interior e as fraldas, as meias e os casaquinhos, a banheira, as toalhas, a cama e o colchão, as cortinas azuis e o quarto pintado de branco por onde andavam à solta as estrelas e borboletas, em raios de luar, no rio das Pérolas.
- É uma menina. Tem 8 meses. Está um pouco tensa, mas com massagens diárias, muito amor e cuidados vai recuperar bem - dizia a assistente do infantário.
Depois das assinaturas, de responsabilidades várias que complementavam outras formalidades anteriores e após visitas demoradas ao infantário, recebeu Susana Pardal a bebé em seu corpo e em seus braços. Estremeceu por dentro na convicção reforçada que iria ser uma boa mãe, prometendo-lhe mentalmente que tudo faria para isso. A bebé era uma promessa de vida a palpitar dentro dum carmesim transparente...
No dia seguinte, novo telefonema e um pedido de desculpas, pois tinha havido um engano, bem, não era bem um engano, era mais uma omissão. Se poderia passar pelo Serviço Social no dia seguinte. Estremecera, receosa, Susana Pardal. Não lhe podiam retirar a bebé! Isso nunca!
Afinal o engano tinha a ver com uma herança que faltava referir e tomar as devidas providências. A bebé Lúcia herdara também um cofre com alguns bens pertencentes a sua mãe. A advogada do Serviço Social abriu-o na sua frente, onde, além de duas cartas, havia uma escritura duma prédio alugado, cujo rendimento revertia para uma conta bancária, em nome de Lúcia. Havia, ainda, um camafeu de jade com adornos, colares, anéis, brincos, de várias cores e materiais, onde predominava o ouro e raramente a prata. Era a herança que a mãe tinha deixado à sua filha, antes de morrer, mas a lei exigia que apenas poderia tomar posse, quando atingisse a maioridade, aos dezoito anos. O Serviço Social facultou-lhe as fotografias do conteúdo do cofre, para o mostrar à sua herdeira, quando a mãe adotiva achasse conveniente. 
Surpreendera-se Susana Pardal. Não era pelo ouro que iria amar mais a sua filha, mas se a sua bebé tinha já à nascença um pecúlio considerável, tanto melhor para ela. O que importava é que era linda, como não tinha imaginado antes. Linda! 
Tão pequenina e já com tantas surpresas, pensava para si! Como seria no futuro?
.....

O tempo passa depressa e mais depressa quando se chega a certa altura da vida, onde paramos para pensar o que fazer com o que nos resta. Foi nessa circunstância que  o diretor executivo tomou consciência que era preciso continuar a vida, antes que fosse demasiado tarde. Retomar o fluxo das águas do rio, na sua caminhada eterna para a foz. E nesse percurso, quantas margens ainda havia para beijar, campos para alagar e vida para alimentar!
O diretor executivo tinha deixado a mulher e o filho em San Wui,  a separação era de comum acordo e efetiva.  Decidira regressar a Macau, ocupando as antigas funções de diretor executivo. A empresa renovava-se todos os dias e todos os dias enfrentava novos desafios e para isso exigia um pulso determinado e uma visão alargada da situação.
Num dia de maior solidão, guiado por mão invisível, a recordar o que tinha sido a sua vida familiar, deu consigo a ver os pais saírem, com os filhos pela mão, no Jardim de Infância, onde tantas vezes tinha ido levar o filho. E lá estava Susana Pardal sorridente, como sempre, a despedir-se das crianças com um abracinho, cabelo atado atrás e bata cor de mar. Foi uma viagem a bordar a memória, do passado até agora, recordar daqueles anos todos e os seus olhos, cor de mar, a florescer no horizonte. 
 O tempo, esse vento criado pelo movimento da vida, empurra-nos para a frente. Não nos deixa adormecer e se por acaso paramos, é apenas para ganhar balanço para prosseguir com mais determinação. Há tarefas a realizar e ele lá está a lembrar-nos constantemente, sem cheiro, nem ruído, como as flores morrem e voltam a nascer no ano seguinte. 
O diretor executivo adorava brincar com a Lúcia. Esta retribuía-lhe atenções que, não fora Susana Pardal educadora, seriam interpretadas por ela, como uma ligeira ponta de ciúme. 
Foram partilhando o tempo, as confidências, o espaço, os passeios de fim de semana. 
Naquele outubro ele não se esqueceu dos bolos lunares para as duas. 
Um dia, Susana pardal disse:
- Porque não ficas comigo?
- Era o que eu te ia perguntar, porque não fico contigo?
Sorriram e num abraço prometeram ser água do rio, chuva e mar, gotas de orvalho nas pétalas do desejo, semente e fruto dum amor prometido e tanto tempo adiado. E Lúcia WengXi sorria ao vê-los assim abraçados:
- Mamã! Papá!
- Adoro esta menina. És um tesouro, Lucieee! - dizia o diretor executivo, abraçando a criança, com uma ternura nunca antes vista.
- É linda, não é? Um amor da sua mamã! Queres ver as fotos dela? Ah! E as fotos do seu tesouro?
Foi com ar progressivamente pálido que o diretor executivo segurou o álbum nas suas mãos e fixou o olhar numa foto, onde um anel revelava a inscrição, Teresa. 
Volveu o olhar para Lúcia e retornou para as fotos.
- E os pais? Sabe-se quem foram? – perguntou ele, tentando controlar-se o mais possível.
- O pai é desconhecido e a mãe faleceu dias depois de a entregar para adopção - disse Susana Pardal, enquanto, desviava o olhar sorridente para Lúcia, pegando-a ao colo,  às cinco da tarde, num domingo qualquer de maio, com vista para o farol da Guia, em Macau!

Manuel Rodas










sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Viana de nós





Neste texto recorro às recordações que transporto comigo e teimam em resistir, bem vivas! Aqui aprendi a nadar, aos seis anos, aqui me apresentei para o serviço militar e aqui fui Professor. Uma parte de mim não ficou ali, mas ... trouxe Viana comigo. Para sempre!


Adoro Viana do Castelo e, como Babilorna, quem lá vai não torna. 
Eu não tornei. 
Procuro a parte de mim que nunca deixou Viana. É uma paisagem iluminada pelo excesso de luz, brilho, risos e fantasia. São as sombras arremedadas pelo granito, pelo silêncio das ruelas da noite, a alegria contida nas esquinas, é o esbracejar de afetos nos olhos dos transeuntes. 
Em Viana nunca fui estrangeiro de mim. 
Vi a eternidade num livro aberto, com a capa de Sta Luzia, entre o céu e a terra, os sacrifícios derramados no escadório, um mar de promessas nas ruas e ruelas, enquanto o rio me abraçava nos soluços da praia norte.
Ah! Foi aí que aprendi a nadar, a lançar balões, sonhar nas algas e nas rochas as promessas do velho castelo. 
Melhor, foi aí que aprendi o doce sabor da humanidade! 
Talvez por isso, nunca daí tivesse saído!
De vez em quando, Viana vem até mim, abraça-me, num sussurro terno, de quem me conhece por dentro e por fora. 
Estende-me um mar de recordações - ou sou eu que lhe pergunto - desfia um rosário de terços, em ladainhas de cores, cheiros e...maresia.

Viana é também um amigo com falas de marinheiro. 
E toda a tarde desfia as histórias dos Fagundes desconhecidos, que em passarolas desafiaram os intrépidos mares da imaginação e da boa querença, em disputa com altaneiras e escuras ondas de guerra de servidão e liberdade.
Bebemos um copo de branco na praia e vamos petiscando as palavras e os silêncios, rio acima, até a alma desenxergar uma réstia de esperança.
O meu amigo afasta-se no sono duma nova viagem e regresso sempre à praça da República que há em cada um de nós. 
É aí que voltamos sempre, como o sol, ao nascente, a lua,  aos quartos e o amor ao coração.
Vou pela rua Grande até ao Largo de S. Domingos. 
Retenho as caras lavadas de olhos feitas e mãos lavadas do suor que escorre pelas paredes enfeitadas de cores da alegria. 
Por ali ando eu a correr nas risadas das crianças libertas dos musgos das obrigações inúteis. 
Corro até Monserrate, que se agarrou a mim e ao sonho de ser Professor.
 É a aventura que transpira infância, o pai do homem aprender a ser gente.
 Foi o Lima que me trouxe de Soajo a Ponte de Lima e, finalmente, até aqui. 
Ensaiamos aventuras de piratas de nuvens com espadas de faz de conta, diretas a um coração desconhecido e sempre disponível para renascer em cada gesto e em cada abraço. 
Vou de mãos dadas com a infância, de visita aos medos e às noites escuras ameaçadas por manhãs claras.
Volto à minha praça, a da República. 
É o meu epicentro, palco de todos as festas e de todos os dramas. 
Subo a um palco, pelas mãos do Valdez e do teatro, abro os braços, abanando as asas de Lúcifer, perante uma plateia que não  se amedronta, com um  grito de  a barca, a barca...
É aí que Viana volta, vestida de cigana, a tocar pandeireta, meneando os quadris e dando ao céu o doce bambolear dos seios quentes. 
O acampamento dilata-se nos sonhos e parte nas calçadas da saudade, no mais recôndito de mim.
Renasce outra vez numa parte menos obscura da alma, o doce acre do amor em procissões de andores desfeitos, e vejo-me a falar sozinho, esbracejar e rodopiar um vira, uma cana verde no descontentamento desafinado duma concertina.
Vão passando na minha vida as mordomas, o ouro deslumbrante de corpos, alma e olhos.
São mulheres ou gaivotas que um dia trocaram o mar pela praia, a ele voltando em procissão nas noites de lua cheia. 
Sereias que nuas, se deixaram possuir nas águas do mar do Cabedelo e entregaram os corpos às rochas da Praia Norte, transfiguradas de monjas matriarcais, com anémonas nos cabelos e estrelas incandescentes nos olhos.
É toda a humanidade que aqui se reúne, do sul ao norte, aqui se reinventa e, aqui, a alma e a eternidade ganham sentido, em uníssono. 
Junto-me a ela, enfeitado de penas e os restos dum pano azul, ao peito.
Como ela, aqui volto, porque daqui nunca saí, nem saio, pelo menos enquanto ela me quiser!
E se morrer, é aqui que quero voltar a viver!
 Para sempre!

Manuel Rodas

Foi aqui, na presença deste forte, marejado de espuma , que minha mãe me ensinou a não ter medo do mar e assim, aprendi a nadar! 
Obrigado, ao autor da fotografia!