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terça-feira, 23 de junho de 2020

Diretor executivo



Farol da Guia, Macau


O diretor executivo


Teresa TsingTao de braço esticado, desviou o olhar do Farol da Guia, puxou para si um apontamento da última reunião do Conselho Administrativo e leu:
- a entrada em funcionamento das duas delegações; 
- o financiamento a 10 anos, para regularizar o crédito anteriormente concedido;
- a reorganização dos serviços da empresa com a criação da direção comercial e loja online;
- a apresentação, pela primeira vez, de saldo positivo. 
Recordou o que o diretor executivo dissera na reunião: a empresa tinha de se libertar do ambiente demasiado influenciado pelo passado. A empresa, se queria ter uma dimensão global, teria de pensar globalmente. Tinha de introduzir os mais modernos métodos de gestão e planeamento estratégico. Não podíamos ir para o mundo global, com um caderno de apontamentos e um gravador na mão. A empresa não poderia estar condicionada por imprevistos. Todos eram responsáveis pelo sucesso e êxito e, portanto, todos tinham de “vestir a camisola” da empresa, tinham de ser uma equipa e cada um orgulhar-se dos sucessos de todos. O destino não podia ser uma fatalidade, mas sim uma possibilidade, contrariada ou confirmada pelas nossa vontade e consciência de existir. Estes eram os novos desafios num mundo global, altamente competitivo.
Apesar de ela não concordar totalmente, pois desconfiava dos resultados e pressupostos do novo liberalismo, bem conhecia o que significavam os “colaboradores”, não se via a comer hamburgers, ou beber cerveja todos os dias, mas apesar disso, sorriu a imaginar-se a passear em Nova Iorque ou em Londres.
Sem se ter apercebido, a mão esquerda descaiu ligeiramente e pousou no colo. Só depois de ter mentalmente recordado a reunião, tomou consciência que a mão se fixava no ventre e teimava em não sair de lá. Foi nessa altura que teve um pressentimento. Seria possível? Não podia ser...
Apenas horas mais tarde, já deitada na sua cama, quando fechou os olhos, pode retomar as preocupações que tivera no escritório. Estaria grávida? Fez e refez cálculos, mas não chegou a nenhuma conclusão. 
Se estivesse, como lidar com a situação? Iria fazer o teste de gravidez e logo se veria. Nunca tivera a oportunidade de pensar ou desejar ser mãe. O estilo de vida, as exigências do trabalho e a história pessoal nunca lhe deixaram nem tempo, nem vontade de pensar nisso.
Nos dias posteriores o volume de trabalho aumentara na empresa e só na semana seguinte soubera o resultado, grávida de dois meses. 
Todos os dias revia as suas decisões. Seria rapaz ou menina? Iria informar o pai da criança? Poderia contar com o seu apoio? Como reagiria ele? 
Ela bem sabia que ele não poderia fazer grande coisa, a não ser, dar-lhe uma pequena parte da sua vida, alimentar-lhe alguns sonhos, algumas prendas e quem sabe, talvez um pouco de amor. Era, provisoriamente, diretor da empresa, casado, pai de um rapaz, uma família estável e socialmente valorizada na comunidade. O que acontecera durava já há dois anos. Ela nunca pedira nada e ele nada prometera. Aquela relação preenchia o vazio que sentia desde que os pais tinham falecido, prematuramente. Ficara só, mas a força de vontade de prosseguir a vida, o trabalho e um pequeno grupo de amigos era tudo que lhe restava. 
Nem se lembrava muito bem como acontecera. Ela demorava-se no trabalho, tentando responder às exigências do diretor, com docilidade, sempre disponível para a empresa, a salvaguarda do seu posto de trabalho, as reuniões até tarde, as deslocações no território, mas o que precipitou tudo foi aquela viagem, dois anos antes, a Cantão.
Foi um olhar de fim de tarde, um sorriso convidativo, uma mão que descaiu no intervalo dum chá, muita solidão e o desejo de serem amados e... pronto. Que mais é preciso para o amor acontecer?
Os encontros foram fluindo, quer no escritório, quer em casa dela. 
Ele entrava, olhava-a a sorrir, afagava os cabelos, puxava-a para si, os corpos quentes e húmidos gritavam a comemoração do amor desde o princípio da humanidade, desprendiam-se, voltava a olhá-la a sorrir, afagava-lhe os cabelos, afastava-a de si, levantava-se, vestia-se, despedia-se com um beijo nos lábios ainda húmidos e quentes e ... saía. Raramente havia confidências sobre a sua vida particular e muito menos sobre o trabalho. Também não era preciso, pois ela sabia tudo, ou quase tudo, sobre a empresa.
Sempre lhe dera prendas, mas ultimamente, ele trazia-lhe prendas caras, adornos, colares, anéis, medalhões, alfinetes, brincos, onde predominavam as joias, o ouro e, raramente, a prata. Ela podia ver nos embrulhos a origem da aquisição da maior parte das prendas, Hotel Lisboa. Seria ele jogador? Teria sorte no jogo e azar no amor? Ou o contrário? 
Ela sorria, beijava-o agradecida, mais pela atenção e o amor que lhe dedicava, do que pelas joias, exceto aquele anel com o nome dela gravado, Teresa, o qual usava frequentemente.
Sorria a imaginá-lo a entrar na ourivesaria, a escolher as peças, a pensar nela, pagar e sair, comprometido com a prova da sua traição. Sorriam ambos, quando ela punha ao pescoço os colares, ou nos dedos os anéis. 
Ele tinha um jeito especial para a convencer que eram prendas, provas de amor e não recompensas, aliás, ele tinha um jeito especial para atingir o que pretendia. Não lhe dizia que a amava, mas fazia-lho sentir. Ela retribuía com um sorriso de fino recorte, sugestivo, agradecida, mas não convencida. Havia algo dentro dela que não se desprendia e não a deixava ir a correr, de braços abertos, para ele. Não poder imaginar uma família com ele e ser alternativa à esposa não a deixava confortável. Ela receava que um dia, ele a abandonaria, mas não sabia que era precisamente isso que o desafiava, redobrando de cuidados e presentes, numa afirmação do desejo de permanecer. As hesitações e dúvidas dela mais reforçavam o desejo de conquista, de posse e permanência. Ao contrário da esposa, sentia que não era um território definitivamente conquistado. Era necessário revalidar esse compromisso e esse desejo frequentemente. E ela permitia-lhe essa excitante cumplicidade perversa duma relação extraconjugal.
E quanto mais a tinha, mais ele sentia que não a podia ter. Ou porque ela lhe fugia, escorregadia e esquiva, ou porque a sua situação familiar e profissional não lho permitiam.
No escritório, a relação entre ambos era a que vai do presidente executivo, embora provisório, para a secretária, diálogos restritos, orientações precisas e nada de galanteios ou exageros que os pudessem denunciar.
Quando o queria abraçar, ela dizia, amanhã vou ficar em casa. 
Ele sorria. 
Quando ele a queria beijar, dizia, amanhã vou ao jardim, Teresa! 
Ela sorria sempre!
Assim se passaram dois anos. Mas agora estava grávida. 
Ainda por cima ele iria mudar a residência para San Wui, uma pequena cidade entre Macau e Cantão, para a inauguração duma sucursal da empresa. Ela estranhou não ser convidada para o acompanhar nas novas funções. Também não sabia muito bem se queria ir e por isso, não lhe disse nada. Ficaria na empresa e guardaria o segredo para si. O que sempre imaginara, veio a confirmar-se.
Teresa TsingTao tinha anos e anos de prática de decisões difíceis. Foi no regresso duma viagem a Hong Kong e na solidão de sua casa, que tomou a mais difícil decisão da sua vida, seria mãe solteira! Sim, se não o podia ter a ele, havia de ser mãe dum filho dele, que lhe lembrasse todos os dias quão intenso e efémero tinha sido aquele encontro entre duas pessoas que tudo faziam para esconder o seu amor.
Assim que ele souber, não vai querer assumir a sua responsabilidade, vai afastar-se, ou afastar-me a mim, que dá na mesma coisa - assim pensava ela na solidão acompanhada agora pelo fruto da sua aventura.
......
Não eram muito conhecidos os motivos por que Susana Pardal entregou o ofício de despedimento do Jardim de Infância onde trabalhava, em Portugal. As colegas especulavam, as funcionárias olhavam de lado, tentando compreender a razão desta decisão. A direção da Santa Casa da Misericórdia ainda fez algumas perguntas, tentando apurar se havia algum mal-entendido que pudesse ser remediado, ofereceu-lhe a deslocação para outro Jardim de Infância, mas nada a fazia demover. Iria trabalhar num jardim de Infância, em Macau e era para lá que queria ir. O pai tinha falecido no ano anterior e a mãe aceitava as decisões da filha, tentando compreender, mas sem a questionar demasiado, evitando-lhe o embaraço de respostas difíceis ou impossíveis. 
A sua integração em Macau não foi difícil, embora ela considerasse que era um processo na sua vida e como tal...evolutivo.
O Jardim de Infância distribuía a sua intervenção entre os cuidados e assistência e a ação pedagógica e nesse aspeto Susana Pardal sentia-se à vontade. O trabalho com os pais era uma das prioridades na Escola e desde cedo começou a reparar no ar dum pai que, apesar de ausente, transmitia força e energia e que, regularmente, ia entregar o filho na escola. Tinha um olhar que convidava a entrar ...
Mas Susana Pardal não estava tranquila nessa matéria. Não era para isso que tinha ido para Macau. Queria iniciar uma nova etapa na sua vida, viajar e conhecer outras terras distantes exóticas e sedutoras. Macau era um bom lugar, como ponto de partida para novas viagens! Essa convicção era ainda mais reforçada cada vez que vinha a Portugal, de férias.
O tempo foi passando e já no seu 3º ano foi com surpresa que um dia disse a si própria, e se eu adotasse uma criança, aqui nesta terra de que tanto gosto?
Balanceou os prós e os contras, viu os inconvenientes e as vantagens e não chegou a conclusão nenhuma racional. Independentemente doutras razões, sentia um apelo para se dedicar a uma criança e cada dia mais a emoção dessa decisão aumentava na sua alma. Ser mãe! Ser educadora e ser mãe! Porque não? Tinha tanto para dar e ajudar a felicidade dum filho.
Depois dum ano de espera, foi com enorme surpresa que recebeu um telefonema, com carácter de urgência do Serviço Social. No dia seguinte, teria de tomar uma decisão rápida. Não dormiu nessa noite. Foi passar em revista o quarto do bebé!
Ainda bem que já tinha adquirido o essencial para os cuidados prioritários. A roupinha interior e as fraldas, as meias e os casaquinhos, a banheira, as toalhas, a cama e o colchão, as cortinas azuis e o quarto pintado de branco por onde andavam à solta as estrelas e borboletas, em raios de luar, no rio das Pérolas.
- É uma menina. Tem 8 meses. Está um pouco tensa, mas com massagens diárias, muito amor e cuidados vai recuperar bem. - dizia a assistente do infantário.
Depois das assinaturas, de responsabilidades várias que complementavam outras formalidades anteriores e após visitas demoradas ao infantário, recebeu Susana Pardal a bebé em seu corpo e em seus braços. Estremeceu por dentro na convicção reforçada que iria ser uma boa mãe, prometendo-lhe mentalmente que tudo faria para isso. A bebé era uma promessa de vida a palpitar dentro dum carmesim transparente...
No dia seguinte, novo telefonema e um pedido de desculpas, pois tinha havido um engano, bem, não era bem um engano, era mais uma omissão. Se poderia passar pelo Serviço Social no dia seguinte. Estremecera, receosa, Susana Pardal. Não lhe podiam retirar a bebé! Isso nunca!
Afinal o engano tinha a ver com uma herança que faltava referir e tomar as devidas providências. A bebé Lúcia herdara também um cofre com alguns bens pertencentes a sua mãe. A advogada do Serviço Social abriu-o na sua frente, onde, além de duas cartas, havia uma escritura dum prédio alugado, cujo rendimento revertia para uma conta bancária, em nome de Lúcia. Havia, ainda, um camafeu de jade com adornos, colares, anéis, brincos, de várias cores e materiais, onde predominava o ouro e raramente a prata. Era a herança que a mãe tinha deixado à sua filha, antes de morrer, mas a lei exigia que apenas poderia tomar posse, quando atingisse a maioridade, aos dezoito anos. O Serviço Social facultou-lhe as fotografias do conteúdo do cofre, para o mostrar à sua herdeira, quando a mãe adotiva achasse conveniente. 
Surpreendera-se Susana Pardal. Não era pelo ouro que iria amar mais a sua filha, mas se a sua bebé tinha já à nascença um pecúlio considerável, tanto melhor para ela. O que importava é que era linda, como não tinha imaginado antes. Linda! 
Tão pequenina e já com tantas surpresas, pensava para si! Como seria no futuro?
.....

O tempo passa depressa e mais depressa quando se chega a certa altura da vida, onde paramos para pensar o que fazer com o que nos resta. Foi nessa circunstância que o diretor executivo tomou consciência que era preciso continuar a vida, antes que fosse demasiado tarde. Retomar o fluxo das águas do rio, na sua caminhada eterna para a foz. E nesse percurso, quantas margens ainda havia para beijar, campos para alagar e vida para alimentar!
O diretor executivo tinha deixado a mulher e o filho em San Wui, a separação era de comum acordo e efetiva.  Decidira regressar a Macau, ocupando as antigas funções de diretor executivo. A empresa renovava-se todos os dias e todos os dias enfrentava novos desafios e para isso exigia um pulso determinado e uma visão alargada da situação.
Num dia de maior solidão, guiado por mão invisível, a recordar o que tinha sido a sua vida familiar, deu consigo a ver os pais saírem, com os filhos pela mão, no Jardim de Infância, onde tantas vezes tinha ido levar o filho. E lá estava Susana Pardal sorridente, como sempre, a despedir-se das crianças com um abracinho, cabelo atado atrás e bata cor de mar. Foi uma viagem a bordar a memória, do passado até agora, recordar daqueles anos todos e os seus olhos, cor de mar, a florescer no horizonte. 
 O tempo, esse vento criado pelo movimento da vida, empurra-nos para a frente. Não nos deixa adormecer e se por acaso paramos, é apenas para ganhar balanço para prosseguir com mais determinação. Há tarefas a realizar e ele lá está a lembrar-nos constantemente, sem cheiro, nem ruído, como as flores morrem e voltam a nascer no ano seguinte. 
O diretor executivo adorava brincar com a Lúcia. Esta retribuía-lhe atenções que, não fora Susana Pardal educadora, seriam interpretadas por ela, como uma ligeira ponta de ciúme. 
Foram partilhando o tempo, as confidências, o espaço, os passeios de fim de semana. 
Naquele outubro ele não se esqueceu dos bolos lunares para as duas. 
Um dia, Susana pardal disse:
- Porque não ficas comigo?
- Era o que eu te ia perguntar, porque não fico contigo?
Sorriram e num abraço prometeram ser água do rio, chuva e mar, gotas de orvalho nas pétalas do desejo, semente e fruto dum amor prometido e tanto tempo adiado. E Lúcia WengXi sorria ao vê-los assim abraçados:
- Mamã! Papá!
- Adoro esta menina. És um tesouro, Lucieee! - dizia o diretor executivo, abraçando a criança, com uma ternura nunca antes vista.
- É linda, não é? Um amor da sua mamã! Queres ver as fotos dela? Ah! E as fotos do seu tesouro?
Foi com ar progressivamente pálido que o diretor executivo segurou o álbum nas suas mãos e fixou o olhar numa foto, onde um anel revelava a inscrição, Teresa. 
Volveu o olhar para Lúcia e retornou para as fotos.
- E os pais? Sabe-se quem foram? – perguntou ele, tentando controlar-se o mais possível.
- O pai é desconhecido e a mãe faleceu dias depois de a entregar para adoção - disse Susana Pardal, enquanto, desviava o olhar sorridente para Lúcia, e pegando-a ao colo, a estreitava nos braços e a beijava com frenesim maternal, às cinco da tarde, num domingo qualquer de maio, com vista para o farol da Guia, em Macau!

( o leitor, se bem o entender, encontrará o final que mais lhe convier, a si, e ao superior interesse da história, porque os altos interesses da criança deverão estar salvaguardados pelos pais!)

2019, Manuel Rodas

sábado, 13 de junho de 2020

Pintar


Pintura, 2020,  Inês Rodas



Enquanto a minha filha fazia os seus trabalhos de pintura, sentei-me a seu lado e tentei acelerar a conversa. Peguei num papel e num pincel e fomos conversando. O que posso pintar eu, que nunca pintei nada?
- Ouve a música! -diz ela a meu lado.
Sorri, para mim próprio. Quantas vezes não disse isso aos meus pequenos alunos com medo das tintas  e do pincel.
- O que te diz a música?
- O que eu quiser ouvir, ou melhor, o que eu quiser pintar!
Silêncio. O que quero pintar? Ouço a música. Pink Floyd!
Enquanto a inspiração não vinha, comecei por uma clave de sol. Ela olhou de soslaio e sorriu. Percebi a sua condescendência. A parte óbvia da música, a sua representação gráfica da pauta, o símbolo anterior à música que ouvia.
Com pastel imaginei que a clave Sol emitia música e esta se refletia em ondas coloridas na minha mente, que as devolvia em círculos e reflexos coloridos, de volta, formando uma imagem do movimento que experimentava.
A música vinha de longe, sei lá, do final da minha adolescência, e apresentava-se agora, nas mãos da minha filha.
- As cores mais escuras primeiro - conduzia ela a preocupação comigo e com a minha obra.
Quando pensei terminada a tarefa, senti que algo despertava em mim, precisava acrescentar algo, fora daquelas tintas e cores.
- Sinto que preciso acrescentar algo....
- O quê?
-Não sei....
Fui buscar o ferro de engomar e com um papel grosso, torturei as cores no fogo.
-És mesmo experimentalista!
Sorri.
E lembrei-me do amigo João Claro, quando, nos anos 90, me dizia, tens mesmo jeito para a investigação!
Quando consciencializei esta minha “originalidade” descobri também o valor do Se! Quer dizer, eu sempre soube o valor do “Se. Não sabia é que o Se valia tanto!
A primeira e última vez que recorri ao Se foi para fazer a pergunta mais eloquente da minha vida, E SE O MUNDO FOSSE DIFERENTE, PARA MELHOR?
A essa pergunta inicial que resume todas as outras, sucederam-se milhares de perguntas, como é natural em qualquer pessoa.

Achei que o trabalho estava terminado, mas não a minha vontade de encontrar um mundo diferente.
Peguei noutra folha e tentei descobrir formas transitórias, entre este mundo e o outro, o diferente e desejável.
Entretanto, a Inês, enquanto pintava com cores arroxeadas o seu quadro/instrumento musical, introduzia a temática para subverter o mundo: os males do mundo seriam, o excessivo consumo de bens e carne, o machismo, o sexismo, a ostentação do dinheiro e do poder, a insensibilidade e falta de políticas para minorar o sofrimento dos marginalizados. Para alterar a situação era necessário uma consciencialização geral, traduzida numa ação prática e concertada com as diferentes nações e povos, assegurando o direito à diferença, o respeito pela natureza, pelos animais, acesso às artes e à cultura. Era todo um programa de ação política, que eu não me importaria de assinar por baixo.
Voltei a minha página ao contrário e os elementos ganhavam novas significações. Se um mictório  (Duchamp) (1) pode ser uma obra de arte, também o meu quadro poderiam ser duas obras, uma a direito e outra ao contrário. Sorri, a pensar que Se o pintasse nas costas, passariam a ser 3?
Se ela me tivesse ouvido, diria de seguida, excesso de zelo, ou preocupações de produção para alimentar o sistema? Felizmente não ouviu e a coisa ficou só para mim.
Fiz um intervalo, levantei- me e vim olhar a rua. Deserta!
Voltei a sentar- me, peguei em nova folha, mas desta vez, recusaria as tintas e os pincéis. Experimentaria outros materiais. Um mundo novo precisa de novas ideias,  novos materiais mais consentâneos com o equilíbrio natural.

Com os condimentos da culinária salpiquei a folha de odores frescos e longínquos. Se era preciso mobilizar os povos, a pimenta, o colorau e o caril seriam bons representantes dessas paragens. Com cola de madeira diluída em água, com os dedos fui espalhando sobre as cores e recriando novos reflexos dum tempo que se anuncia, mas ainda não chegou, vai chegando!
Ela, enquanto dava vida ao seu quadro, continuava na sua argumentação, criando um modelo de sociedade utópica, que no dizer de Agostinho da Silva (2), não quer dizer impossível, mas sim, que ainda não foi possível!
- Esse cheira bem! O que levou?
- Levou séculos até chegar a Portugal. Quantos homens morreram e quantas mulheres ficaram por casar, para que a pimenta e o caril pudessem entrar no nosso imaginário, na fruição e agora estar aqui nesta obra.
- Pessoa e Floyd?
- Quantos ainda precisarão de morrer para que o mundo mude.
- E Se ninguém morresse?
- e Se todos, em todo o mundo votassem em branco?
- Saramago?

Rimo-nos os três, porque a mãe, que entretanto chegara, ainda tinha assistido a este final glorioso!


https://pt.wikipedia.org/wiki/Marcel_Duchamp
https://pt.wikipedia.org/wiki/Agostinho_da_Silva

MRodas






MRodas, 2020



MRodas 2020


MRodas 2020



segunda-feira, 22 de julho de 2019

A concentração de Faro


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 23 de julho de 2010

O Paulo E. convidou-me a ir a Faro, à concentração de motas e motociclistas. Um grupo pequeno, partida na sexta e regresso no domingo, com estadia numa residencial e ida à praia. Porque não!? Já há vários anos que digo para mim “ para o ano vou”. A verdade, é que os afazeres do quotidiano, uma certa inércia e falta de planeamento têm adiado sucessivamente esta possibilidade. Convencida a família, lavei a moto, puxei-lhe o brilho, soprei, mudei os piscas e olhei a obra, com enlevo. Ela continuava linda e a sorrir para mim.
Aquilo prometia!
À hora combinada, sexta feira, 10,30 h, encontrei-me com ele na esplanada dum cafezinho num Bairro de Lisboa. Conversa daqui, conversa dali, apresentação a um grupo inicial de 6, depois mais 4, depois cinco, mais café, outro aperitivo, mas ninguém tinha pressa. Um amigo pede uma sopa de legumes! Eram 11,30h.
Finalmente soube da razão de tanta espera. Um elemento do grupo tinha ido comprar a moto, nessa manhã, e por isso, estávamos à espera…
Aquilo prometia!
A maior parte eram Harley’s. As outras distribuíam-se entre as Hondas, VFR e Goldwin, a Triumph, a BMW e claro, a minha Yamaha. O grupo era constituído por vários subgrupos: uns 4 ou cinco mais maduros, reformados ou pré-reformados, 3 ou 4 professores, 3 ou 4 tecnocratas, informáticos, dois casais, 3 ou 4 musculados com tatuagens e finalmente o M.! A sua moto, uma Harley com mais de 50 anos, há muito pedia a reforma. Não tinha farol e não carregava a bateria. Ele era baixo, quase gordinho, quarentão, cabelo (pouco) preso atrás e uma barbinha dependurada no queixo, com andar gingão, riso matreiro, entre a ironia e a piada fácil, olhar rápido e de soslaio. Calças de ganga e na camisola o retrato do Salazar, ainda novo, talvez professor em Coimbra, com a inscrição na vertical “ o incorruptível”. Concentrava as atenções de todo o grupo. Resposta fácil, era o anti-líder. O outro era baixo, vestido de preto, olhava por cima de todos e chamavam-lhe o chefe. Era o líder. Finalmente deu o sinal e as Harley’s fizeram-se ouvir com o matraquear constante, tradicional destes motores, seguidos do resto da orquestra, mais silenciosa, mas afinada.
Aquilo prometia!
Atravessamos a Ponte Vasco da Gama e aquele enxame de motores a zumbir, cromados e capacetes a brilhar, entusiasmava-me, confesso. Parece que já tinha visto esta cena, ou num filme, num sonho, numa revista, não importa, era-me familiar! Finalmente íamos! As paragens foram-se sucedendo. A caravana lá ia encolhendo nas paragens e alongava-se nas partidas. Umas vezes para meter gasolina, outras porque era preciso ir à casa de banho e reabastecer com água, cerveja e salgados. Logo a seguir, porque a bateria da mota do M. tinha acabado e como não recarregava era preciso trocar por outra. Ou porque estava muito calor e era preciso aguardar. Afinal eles já se conheciam há vários anos e até conheciam algumas pessoas nas tascas onde parávamos. Soube depois que faziam esta peregrinação, todos os anos nesta altura.
Aquilo prometia!
Quando alguém perguntou ingenuamente se já tinham marcado o jantar, o M. respondeu: Mas vocês querem andar de moto ou querem ir numa excursão com tudo programado? O risinho sarcástico, os olhos semicerrados, como quem tinha descoberto a última verdade… Todos riram, acharam piada e claro, queriam andar de moto e tudo o que isso pudesse significar. O M. prendeu com um esticador a lanterna no lugar do farol, a sorrir cinicamente e ligou o interruptor escondido da iluminação da matricula. O pequeno rectangulozinho do tamanho duma carteira de fósforos vermelha piscava como luzinhas do pinheiro de natal, enquanto dizia não querer problemas com a polícia.
O Alentejo estava redondo, quente, seco e sonhador. Imensas áreas com plantação de tubos, a imitar o plantio das videiras no Douro, mas afinal eram oliveiras… Eram os espanhóis a investir na azeitona, no Alentejo. O sol ia-se despedindo de nós, ainda antes de chegarmos ao Algarve. O ar começava a ficar mais fresco e o ronronar dos motores embalava um final de tarde reconfortante e prometedor.

Nova paragem. A mota do M. recusava-se a andar. Os cinquenta anos impunham a sua lei. Todas as motas encostaram na berma da estrada, que subia até ao céu e deixava imaginar o que se esconderia lá por trás da elevação. Os vários experts foram sucessivamente desistindo, enquanto se contavam piadas e histórias acerca de M. e da sua mota. As coisas este ano até estavam a correr bem. O ano passado trazia uma bateria de computador e pedia nos cafés para a carregar. Só muito depois a turba começou a mostrar alguma impaciência. Eram 22h e estávamos numa recta em direcção ao céu… Os carros iam passando e alguns perguntavam se precisávamos de ajuda. Com os telemóveis acesos, dois ou três faziam sinal para abrandarem. De repente, ouve-se uma chiadeira de pneus, uma guinada e… um alívio! Por sorte, o carro tinha-se desviado a tempo de levar na frente as motos todas… Este foi o sinal. Ele que mandasse vir o reboque e ficavam dois ou três a fazer companhia. Assim foi. E outra vez, finalmente, a viagem recomeçou em direcção ao restaurante!
Aquilo prometia!
Quando lá chegamos, o homem entre dentes foi dizendo que era uma falta de consideração, pois tinham marcado para as 21 e já eram 23 h. Entretanto chega mais um casal e comemos, bebemos melhor ainda, e para pagar como éramos 18, alguém resolveu que se dividia por 14, pois as 3 mulheres não pagavam e o marido da recém chegada também não. Porquê? Perguntei ao meu colega do lado. Eu já não quero saber, dizem-me para pagar e eu pago! Era o mesmo que mais tarde me confessava que quando lhe pediram um orçamento, para determinada obra, este disse: Se viesse da Alemanha era 500 mais caro. Assim faço 500 mais barato e dividimos a diferença ao meio!
Aquilo prometia!
Em direcção à residencial, ao virar numa esquina, com os pés no chão, deixei fechar demais a direcção e quando acelerei, já não fui capaz de segurar a mota, pois o peso tinha-se deslocado demasiado e por isso deixei-a cair. Resultado, um pisca e a manete do travão partidos e uma humilhação às 2 da manhã. Como se foram quase todos embora, só dois amigos me acompanharam, pelo que quando quisemos saber onde era a residencial estávamos a perguntar a quem passava… Foi difícil, mas finalmente enquanto tomava banho, jurava que era última vez que ela me faria cair. Quando chegasse a casa a primeira coisa a fazer era pôr um anúncio, isto não voltaria a acontecer, já era a 3ª ou 4ª vez, estava farto e sempre pela mesma razão: ela impacientava-se!…
Aquilo prometia!
No dia seguinte, pequeno-almoço e praia. O mar…mar… sempre igual e sempre diferente. Lá ao longe Marrocos, deste lado as Canárias e mais à direita a Madeira e acima os Açores.
Queres ir a Faro? Que não, era só uma possibilidade, mas não era exactamente necessário. Preferia ir no dia seguinte ao desfile! Fazes bem, pois aquilo é uma confusão, as casas de banho só funcionam no primeiro dia, é uma bagunçada, a comida deixa a desejar e os preços de entrada são exorbitantes e injustos…
Banho, mergulho, passagem pelas gordas do jornal ” i “, almoço, bife de atum. Pouco tempo depois, com um amigo, corre, corre, alergia ao sol, muito calor, tremedeira, calças na mão e… diarreia. Desfazíamo-nos em merda.
Isto prometia!
À noite jantarzinho de peixe assado e coca cola, com passagem pela farmácia. No dia seguinte, enquanto tomava o pequeno-almoço e pronto para ir a Faro ver o desfile, comecei a ouvir: Este e aquele já foram embora… e eu e o outro vamos agora. O T. perguntou: E se fossemos agora, enquanto não há muito calor? Parávamos em Beja ou Évora… Pois… era bom…enquanto não há muita confusão…vamos lá? E eu: Pois vamos lá embora! E assim iniciamos o regresso às 11 horas, quando o sol começava a ficar mais quente. Depois até Évora foi um saltinho. Chegamos lá esbaforidos e assados por volta das 14 H.
Cheguei a casa às 21h de domingo, depois de passar pelo supermercado a comprar chocolates. A família tinha-me preparado uma recepção incrível. Abraços e beijos, sorrisos e beijos. Banho com sais, flores e chá verde, velas e velinhas por tudo quanto era sítio e um vinho branco fresquinho, com mais umas iguarias que a minha filha tinha ajudado a mãe a fazer… com um letreiro florido a dizer: Para o maior motard do mundo!
Sinceramente, senti-me bem. Achei justo e merecido. Tinha valido a pena sair, para voltar a casa, com dois chocolates e um sorriso. Não interessa onde fui, nem com quem fui, nem o que fiz. O mais importante foi ir, correr atrás dos sonhos e fantasias, regressar e continuar a viagem, através dos que mais amo.

19 de julho 2019

Quem diria que nove anos depois eu voltava pela terceira vez ao Algarve, de mota, com os amigos de 2010? Bom eu já tinha ido lá em 2015, mas foi uma viagem normal. Normal? Com estes amigos nada pode ser normal.
Ainda não tinha falado no Meia Orelha? Pois o Meia Orelha era um artista...incompreendido. Tinha trabalhado nas Páginas Amarelas (PA) pintava e tinha algum sucesso na venda das suas obras. Antes tinha dado aulas  de Educação Visual, mas foi ganhar mais e com mais liberdade para as PA.
Era gordo, suava muito, bebia mais, conduzia a maior parte do tempo com a mão esquerda no punho da direita, enquanto coçava as pernas e as costas com a mão direita. Tinha uma mochila escura que nunca largava o que levantava as maiores suspeitas sobre o seu conteúdo. Conduzia uma BMW azul, 1100 cm3, como nova, bonita, mas a precisar de óleo, a cada 300kms.
Quem fez a marcação do hotel, reservou 12 ou 13 lugares e por distribuição mais ou menos anárquica, ficou decidido que íamos para o mesmo quarto do hotel. O Meia Orelha era simpático, bonacheirão, até. Um artista nunca pode estar zangado com a vida. Com as pessoas e as instituições, sim, mas com a vida, não.
O problema é que ele ressonava muito e de manhã pedia-me desculpa e sorria com um sorriso de complacência com a fatalidade - não havia nada a fazer. Por mim, eram duas noites e pronto. Mas fiquei a pensar que a esposa não teria vida fácil, deitada ao lado dum trombone resfolegante. Conversamos muito e ele fez muitas confidências, o que me pareceu estranho, uma vez que nos conhecíamos mal. E perguntei-me: o que tenho eu para lhe transmitir tanta confiança?
E era um rosário de confidências. A má relação com a mulher, com os filhos, problemas de saúde, o acidente que tinha tido e o obrigara a andar com meia orelha transplantada nas costas, durante algum tempo, enfim, uma vida bem preenchida com factos cinematográficos, mas que se percebia uma alma incompreendida e inquieta.
No regresso, o grupo de seis parou para almoçar em Évora. Comemos e bebemos o bastante para chegar a casa sem apetite. Quando voltamos para as montadas, não é que a BMW do Meia Orelha tinha um pneu furado? Depois de se ter analisado a situação, concluiu-se que era a válvula que tinha rebentado e ...precisava dum reboque. Foi com pena de todos que o vimos assistir ao reboque da mota e com ar compungido subir para o camião de reboque, com a mochila às costas. Ficamos a tecer considerações sobre as BMW’s, sobre o carácter dele e sobre a sua mochila. Alguém adiantou que ele trazia as jóias (da mulher?) ou pedras preciosas. Disse que deviam ser documentos importantes que ele guardava lá. Não lhes podia falar sobre as confidências que me tinha feito nessa noite.

O tempo passou e um dia recebo uma chamada. O Meia Orelha queria tomar um café comigo e eu sugeri o Inatel de Oeiras. Ele apareceu, muito transtornado, com o suor a cair em bica, muito agitado e quando nos vamos sentar surgiu uma colega que eu não via há muitos anos. Ela perguntou por mim, pela esposa, pela minha filha, por colegas, contou histórias dos passeios dela e enquanto ia olhando para o meu amigo sentado, ia pensando que talvez fosse bom, pois podia acalmar-se enquanto esperava e depois podíamos falar melhor.
Enganei-me. O Meia Orelha levantou-se ainda mais agitado e  disse que não podia esperar mais, que tinha pena mas tinha de ficar para outro dia. Mostrei-me arrependido da demora e foi constrangido que me despedi dele. Nunca mais o vi e passado duas semanas o Tó M. telefona-me a dar a novidade, tinha sido internado a pedido da esposa, deram-lhe duas injeções, prenderam-no com o colete, mas ...tinha havido um erro e ele morreu.
Reconstituí a cena e as peças não articulavam de modo a fazerem sentido. Porque tinha tanta necessidade de falar comigo, que mal nos conhecíamos? Porque estava tão agitado? Porque não esperou?
Foram perguntas que só agora, nesta ultima viagem pude encontrar algumas repostas, depois de muito conversarmos. Sim porque ele  e o famoso Manel, foram as estrelas temas da nossa conversa em 2019!
Pelos vistos ele estava muito agitado nesse dia, porque me iria fazer um pedido extraordinário e o deixava tão inquieto, que eu ficasse fiel depositário da sua mochila! Porquê? Porque eu não era conhecido da família, nem dos amigos e deste modo, eles nunca suspeitariam da pessoa que guardava a mochila, bem como do seu conteúdo.
Fiquei lisonjeado por ele confiar em mim, mas não sei como lhe poderia dizer o quanto isso me incomodava, pois como iria guardar algo de proveniência muito suspeita?
Tive pena dele e de que tivesse morrido dessa forma, aparentemente por negligência médica.
Mas voltando a 2019. Eu tinha prometido que não mais atravessaria o Alentejo às 16h da tarde. Nem às 17!
Mas voltei. Passei no inferno duas vezes, uma para baixo na sexta feira, dia 19 e outra para cima no domingo, 21. Ele existe, mesmo que o Papa venha dizer que o inferno já não existe. Existe na estrada do Alentejo, entre Évora e Almodovar, ou entre Almodovar e Évora, de mota, em julho de 2019!
A parte restante e que dá muito prazer é a possibilidade de fazer muitos quilómetros com amigos. Partilhar a paisagem, apontar com o dedo indicador o ninho da cegonha no alto dum poste da eletricidade de alta tensão, uma ave de rapina a vigiar o espaço, uma carroça puxada por um casal cigano com uma catrefada de filhos, a silhueta dum monte, o amarelo da pradaria, a azinheira frondosa, o estendal da roupa caída no meio da estrada, a raposa atropelada, um gato morto...
 Numa viagem de carro podemos encontrar um amigo que nunca se cala, mas de mota isso só acontece quando estamos parados. De resto, só os gestos são permitidos e não é sempre porque a 140 ou 150 à hora, não é fácil ter tempo para estes pormenores. É por isso que a viagem de mota permite uma solidão acompanhada, sobrando tempo para uma paz interior, promotora de associações livres de diálogos intemporais e memórias ocultas, comunicação com o eu! E depois, sentir o perfume da terra, a resina dos pinheiros, o vento do deserto e a maresia longínqua, trazida pela aragem é algo que não podemos fazer com a janela do carro fechada e o ar condicionado ligado. É a comunicação mais pura entre o eu e a natural natureza, sem intermediários, sem fingimentos, nem palavras!
Parados, a conversa corre mais depressa que a cerveja. Recordam-se as peripécias do ano anterior, os incidentes críticos da viagem, fala-se das pessoas e de ...motas.
As aventuras do Manel são repetidas, acrescentam-lhes mais episódios, como das lanchas que comprou nos Estado Unidos e quando pôs a primeira na água afundou de imediato. A segunda atracou na doca de Setúbal, mas quando a maré desceu, os cabos rebentaram porque eram muito curtos e a lancha lá ficou no fundo, como a outra.
Ingenuamente perguntei, mais para saber histórias do que para obter respostas:
-  Mas afinal o que faz o homem para sobreviver?
-  Compra seco e  vende molhado - respondeu o Vasco H. com o ar mais prazenteiro do mundo.

Para além do Manel, o Zé C. nascido em Vila Verde foi a atração deste ano.  Baixinho, com o cabelo todo branco, 60 anos, a fazer-me lembrar um ator de cinema, (C.Bronson?).
Com um sorriso  confiante e decidido o homem sabia tudo sobre motas, como se rebaixa, baixa, desfaz e refaz, como se alarga, comprime e encurta, como alonga, encolhe e torce, ou se endireita, desenferruja e pinta! Nada lhe escapava, fazendo meças a qualquer enciclopédia de motas ou qualquer livro técnico de metodologia e instruções, um verdadeiro engenheiro de motas!
Conhecia os modelos todos das motas, desde os anos sessenta, as variações entre modelos e marcas, as características dos motores, amortecedores, espelhos, faróis, parafusos e molas! E por fim, porque os depósitos da gasolina das motas enferrujam todos no fundo.
Tanto conhecimento obrigava-nos a termos cuidado no que dizíamos ou no que perguntávamos, porque senão ele de sorriso irónico, e com autoridade consentida, dizia que não era assim, era assado!

Eu nunca fui um especialista das componentes técnicas duma mota. Sei o principal e este ano até fiz a revisão da minha. Mudei os filtros e o óleo. Foi um êxito para mim, mas daí para a frente é para quem sabe. Gostava que ele fosse meu vizinho, gostava de falar mais com ele e consultá-lo quando tivesse curiosidade ou necessidade, mas infelizmente ele vive lá para os lados de Sacavém, pelo que não será fácil.
Este ano, tal como nos anteriores manifestamos uma alegria enorme no reencontro, como estás, como vais, fomos jantar todos juntos, bebemos uns copos, falamos muito e no dia seguinte uma ida à praia, à noite alguns foram a Espanha  jantar. Metemos gasolina em Espanha porque é mais barata e regressamos no outro dia depois do pequeno almoço. O Paulo E. sugeriu um restaurante em Évora, o Moinho, e aí retemperamos as forças para o regresso. Muito bem escolhido, com sopa de cação, migas com bacalhau e migas de carne frita. Uma cericá, uma troucha, mais uns doces, cafés e o Tó M. não resistiu a um bagaço, prontamente dividido com o sempre atento Jorge. Parece distraído, mas quando lhe convém, ali está ele de copo no ar! Grande Jorge! Para o ano vou fazer uma crónica sobre ele.
Já me esquecia. Este ano os filhos também foram de mota. A geração seguinte apresenta-se ao serviço. Apareceram o filho do Vasco H., o filho do Luís e as respetivas namoradas, e mais um amigo. Preferia que no regresso, a conversa em Montemor-o-Novo, a roda tivesse sido alargada e as duas gerações partilhassem as histórias, as emoções e afectos. Não gostei de ver os dois grupos de costas voltadas.
Ainda não foi possível desta vez. Para o ano vou fazer questão disso!
Ah! E ainda não foi desta vez que fomos a Faro. Ficamos em Vila Real de Santo António!
Boas curvas e ... até breve!
Manuel Rodas