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sábado, 14 de maio de 2016

A nossa alcateia

- Pai, porque os lobos caminham assim?

- Numa alcateia, os 3 primeiros são os mais velhos ou doentes e vão na frente para marcar o ritmo do grupo. 
- Porquê, pai?
- Se fosse ao contrário, estes ficariam para trás e perderiam o contacto com a alcateia. 
- E aqueles cinco seguintes?
- Aqueles 5 atrás são os mais fortes e no centro seguem os restantes membros da alcateia. 

- E aqueles no final, pai?
- No final do grupo seguem os outros 5 mais fortes e em último, sozinho, segue o lobo alpha que controla tudo desde a parte traseira. 
- Porque é assim, pai?
- Porque nessa posição ele consegue controlar todo o grupo, decidir a direcção a seguir e antecipar os ataques dos adversários. A alcateia segue ao ritmo dos anciões e sob o comando do líder que impõe o espírito de entreajuda não deixando NUNCA ninguém para trás. 

O verdadeiro sentido da caminhada não é chegar em primeiro...mas sim chegarmos JUNTOS... e esta, é a lição que todos devemos aprender.  Percebeste?
- Sim, pai, percebi!


terça-feira, 6 de outubro de 2015

O livro de inglês



A minha filha teve como trabalho voluntário ajudar na distribuição de livros escolares usados. Uma vez por semana retirava uma tarde do seu conturbado horário e lá ia ela, calçada abaixo, até ao depósito da Caritas. Levou livros usados e trouxe livros escolares usados. Apenas lhe faltava o de Inglês.
Procuramos na biblioteca municipal, na da escola e …nada!
Havia livros usados de muitas cores e feitios, vários anos escolares, editoras e autores, uns com as marcas do tempo – de estudo e trabalho, ou apenas do desgaste nas mochilas? – mas de inglês do 11º ano …nada!
Comentamos este estranho fato, durante as compras no supermercado, na arrumação nas prateleiras, durante a confeção das refeições, à mesa, antes de ir prá cama, ao levantar e não encontramos resposta para esta dificuldade.
Resolvemos então procurar na Net.

Apareciam alguns (!), mas poucos, o que confirmava a escassez deste livro no mercado de usados e mais fazia aumentar as nossas interrogações.
Havia vários preços, uns mais caros e outros mais baratos, mas a distância não ajudava a tomar decisões, pois ir de Lisboa a Faro trazer um livro de inglês saía muito caro e a época de praia já tinha terminado.
Resolvi então telefonar para o mais barato, 5 euros, na Amareleja!
Uma senhora muito simpática, do lado de lá. À medida que íamos falando, eu, do lado de cá, acrescentava um pormenor à perceção da sua silhueta.
Sim senhora (eu vesti-a de preto), tinha lá o livro que era da filha ( altinha), agora já não precisava, uma vez que tinha entrado na faculdade em Lisboa (rosto entristecido e olhos muito brilhantes).
Eu estou interessado no livro, pois a minha filha precisa dele. Fica-me muito caro ir à Amareleja!
Pois, ela compreendia (mãos grossas e de trabalho, com um anel na mão esquerda, cicatriz na mão direita no dedo mindinho), mas não podia fazer nada, a não ser mandá-lo pelo correio e teria de ser eu a pagar o transporte, pois o livro já era muito barato ( cabelo preto, preso atrás num picho).
A filha na próxima semana, quando fosse a casa podia trazer-mo, mas ela não tinha ainda a certeza se viria neste fim-de-semana ou no próximo (blusa preta, com cinco botões brilhantes, e umas rendinhas na gola e um fio de ouro no pescoço, com pequenas marcas de rugas nos cantos dos olhos. Peito saliente!). Ela agora demorava muito a ir a casa. Tinha de estudar…
Pois…
Perguntou-me onde morava eu.
Aqui, nos arredores de Lisboa, em Oeiras.
Que esperasse… pois havia a possibilidade do António, que era camionista, trazer-me o livro e entregá-lo à irmã que trabalhava em Cascais e assim eu podia ir lá buscá-lo (saia preta, com um aventalzinho preto e fios de linha pendentes, agarrados nas margens para não se estatelarem no chão).
Parece me uma excelente ideia. Dá-me o contato da irmã, que trabalha em Cascais para eu comunicar com ela?
Era a Neuzinha! Que tomasse eu nota do nº de telemóvel (cintura a desaparecer da forma do corpo e pernas redondas, sapato preto).
Fica combinado! Porque vende o livro tão barato?
Ora, a vida custa a todos e ela já não precisava do livro. E na Amareleja dificilmente alguém o poderia comprar, porque não sabiam que ela tinha um livro de Inglês para vender. Poucas pessoas têm net na Amareleja (Está de pé, com uns óculos redondos a ensombrar-lhe a face).
Mas cinco euros também pouca ajuda pode dar…
Ora, a vida está cara e o marido tinha emigrado para fora, para Alemanha e ainda não tinha arranjado um emprego fixo, pelo que toda a ajuda era boa, tanto mais que a filha em Lisboa gastava muito dinheiro (dona de casa?)
A senhora é dona de casa?
Dona de casa? Ah! Quem dera. Tenho uma pequena loja de limpeza e arranjo de roupas. Ganha-se pouco, mas vai dando…
E quantos filhos tem?
Ora, tenho três. Um já está na Alemanha com o pai. O outro já casou e vive no Barreiro. Agora só falta estudar a mais nova. Os irmãos não quiseram estudar… e o senhor o que faz?
Estou reformado.
Teve sorte!
Alguma, mas neste país não é difícil ter sorte! O que é difícil é arranjar quem nos governe bem…
Pois é, pois é! Olhe, seja o que deus quiser! Eu mando-lhe o livro e depois paga à Neuzinha, sim?
Muito obrigado!
De nada! Obrigado!

Tá, é a Neuzinha?
Quem fala?
Sou eu, queria combinar consigo por causa do livro de Inglês…
Ah! Sim, pode vir à Avenida 25 de Abril na próxima 2ª feira?
Posso, claro… e onde?
Venha ao Banco. Conhece?
Sim, sim…
Pergunte por mim aos meus colegas.
Obrigado, lá estarei
A Neuzinha era linda. Tal e qual tinha imaginado a irmã, no telefonema. Alta, esguia, cabelo preto atado atrás, um vestido azul suave e brilhante, um olhar de planície com muito sol naqueles lábios rubros de nascentes prometidos e poentes confirmados! Seriam gémeas?
Olhámo-nos, sorrimos, trocamos as mãos do dinheiro com as do livro, voltamos a sorrir e caminhamos de costas em direções opostas.
Grande Neuzinha!
Quando entreguei o livro a minha filha, ela sorriu e distante desta aventura, voltou mais tarde, agradeceu com os olhos e disse:
-Olha, encontrei uma carta aqui dentro. Vê lá o que diz! – E deu-ma!
Sentei-me a lê-la.
Era uma carta de quatro páginas, uma folha A4 dobrada ao meio.
O Jorge, assinava no fim e dizia mais ou menos isto:
Custava-lhe deixar a mãe sozinha, na Amareleja, mas finalmente iam poder encontrar-se em Lisboa e viverem juntos, o amor da vida deles. Sabia que a sua amada, a quem tratava por Isabel, também o desejava, mas tinham de manter o segredo, pelo menos até ela acabar o curso. Três anos passavam depressa, ele podia tentar arranjar um emprego, pois estava disposto a fazer tudo para viver com ela. Nas férias talvez ele pudesse ir para Inglaterra trabalhar nos hotéis que dava para amealhar para as despesas do ano, mas ela tinha de voltar para a mãe. Tudo isto com muito amor, muita ternura e … muita aventura!
E se eu avisasse a senhora lá no Alentejo sobre os planos da filha? Ou pelo menos fosse a correr, marcar um encontro e confessar à Neuzinha, o que se passava?

(Como vou acabar este texto? Versão 1)
Tocou o telefone. Atendo.
-O senhor ainda tem a casa para alugar? Sim…Sou uma estudante, vim da Amareleja estudar para Lisboa e queria viver com o Jorge…
Fiquei, cúmplice, a desejar-lhes muita sorte!

(Versão 2)
A Neuzinha contou tudo. Como era cúmplice e tinha empurrado o primo para os braços da Isabelinha e como ocultava a vida dupla do pai na Alemanha.
(Versão 3)
A Neuzinha tinha tido um caso com o pai da Isabel e ele resolveu ir para a Alemanha, a tentar afastar-se dela.
Versão 4
A Neuzinha descreveu-me a mãe da Isabel.
Desde que o primeiro filho morreu num acidente de carro, ela nunca mais levantou o luto. Uma das razões porque o marido foi para a Alemanha era porque lhe era muito difícil suportar a dor da mulher.
A irmã era uma mulher muito bonita, altura média, magra e de cabelos pretos. Um corpo bem feito. Ainda hoje com quarenta anos tinha uma face sem rugas. Usava uns óculos redondos para esconder a mágoa dos olhos. Muito organizada, trabalhadora, tinha um fraquinho pelo pároco. Era uma sonhadora e acreditava que um dia ainda ia encontrar o filho, algures lá no céu! Falava dele como se estivesse vivo!

- Pai, o que dizia a carta?
- Nada de especial, apenas uma carta de amor!







sexta-feira, 19 de junho de 2015

Como herdei o Padrão dos Descobrimentos




Padrão dos Descobrimentos

Quando abri a porta mal podia supor que era um velho de fato e gravata, com chapéu na mão. Reconheci-o de imediato e perguntei-lhe o que desejava. Sorriu com ar gélido e disse:
- Queria entregar-lhe o Padrão dos Decobrimentos, que mandei fazer em 1960, aquando das celebrações dos 500 anos da morte do Infante D. Henrique.
Fiquei surpreendido, a olhar incrédulo, mas não o mandei entrar. Há muito tempo que o tinha colocado na galeria das pessoas indesejáveis, ali entre as coisas e os animais.
Ele começou a falar, sem pedir autorização sobre o meu tempo.
Disse-me que pretendia evocar a expansão marítima portuguesa e por isso, tinha a forma de uma caravela, bem alta com 50 metros de altura.
- Mandei colocar bem na frente, a liderar o Infante D. Henrique. Queria que segurasse numa mão uma pequena caravela! Mas claro, ele não é o único herói desta historia. Por isso quis que os outros aparecessem em segundo plano, a Este e a Oeste!
Comecei a sentir um mal estar geral invadir-me. Estaria a sonhar? O que tinha eu a ver com este velho e com o Padrão dos Descobrimentos?
- E porquê neste local?- perguntei eu no intervalo da sua respiração ofehgante
- Bem… eu só vinha entregar esta herança, não vinha dar explicações. Esse parece ser o mal de muita gente. Quer explicações para tudo, sofrem dum mal infantil e ficam toda a vida a perguntar porquê… mas enfim, queria um monumento à minha altura, em Belém, mesmo na margem do rio Tejo, o nosso rio. Queria impressionar os portugueses e todos os que nos visitassem. E já viu como impressiona à luz do pôr-do-sol?
- E a Rosa-dos-Ventos no chão?- perguntei eu, deixando-me entrar neste jogo.
- Isso é outra história, mas fique sabendo que  foi uma oferta da República da África do Sul, toda esculpida em pedra, com um mapa central e figuras de galeões e sereias desenhadas, mostrando as rotas das descobertas concretizadas nos séculos XV e XVI.
- Se aceitar a herança o que tenho de fazer com ela?
- Se aceitar a herança posso partir em paz. Era um grande favor que me fazia. Retirar-me para sempre e encontrar a paz que sempre desejei e nunca encontrei.
- E consegue partir em paz, apenas porque me oferece o monumento? 
Arredondou o chapéu na cabeça, afagou a boca com a mão direita e olhando-me de frente, calou-se.
- Não acha que a herança que deixa é muito maior que o Padrão dos Descobrimentos? Só em sofrimento dava para fazer uma ponte daqui ao Brasil.
Ele continuava calado, sem pressa de partir, mas com vontade de chegar a um acordo. Resolvi ser mais razoável.
- E se trocar o Padrão pela Ponte sobre o Tejo? Quer pensar nisso?
- Não são coisas negociaveis. Venho dar-lhe o Padrão, não a ponte! Essa aliás já nem é minha. É do 25 Abril. Aceita ou não?
- Tenho de decidir já?
- Sim! É do estilo de pegar ou largar...
- E promete que não volta mais?
- Prometo.
- Dê cá o Padrão e passe bem!
Ele deu meia volta, não se despediu, mas enquanto acompanhava os seus passos, com os olhos, ao longo do passeio, podia ver que se tinha empertigado mais um pouco e sem olhar para trás, desapareceu na névoa dos meus sentidos.
Ainda esbocei um gesto, tossiquei, mas ele já não voltou atrás. Ainda tinha uma ultima pergunta, Porque só há uma mulher no Padrão? Era tarde e eu tinha uma explicação - era inglesa!

E foi assim que herdei o padrão dos Descobrimentos!


Manuel Rodas, de Junho 2015

LADO OESTE




LADO ESTE

quinta-feira, 26 de março de 2015

O rio Moldava









Está sentado na beira da cama, de frente para a janela, a ver o mar e a dobrar as meias soltas. Não as dobra como a mãe fazia: esticadas uma em cima da outra e enroladas e abraçadas com os elásticos da última. Um abraço que esconde as duas meias numa bola, prontas a enfrentar o mundo, qual ouriço, ou bola que se desprende das mãos e acaba debaixo da cama ou do guarda fatos, a encher os anos de pó.
Não. Ele aprendeu com Kristine. Esticadas uma em cima da outra e no final um nó, num abraço para sempre, de braços caídos!
Em qualquer dos casos, um abraço prático, mas sem retrocesso.
E interroga-se, que mais aprendeu com ela, para além da música do rio Moldava?
                                                                                             

Frankfurt tinha ficado para trás. Ela era secretária de direcção num laboratório de medicamentos. Tinha pedido suspensão temporária do serviço e com a amiga, Agnes, há muito tinham planeado vir até ao sul.


A viagem ao Alentejo num dia de março com pouco sol corria animada, dentro do Volkswagen, com matricula alemã. Conversavam a perguntar tudo e  a explicar tudo. Como há tantas respostas e tantas perguntas! Aqui é assim, vira-se à direita... as mulheres, os alentejanos...Portugal...em alemão não é axim... Ah!
Alice, eternamente disponível para os outros, sorria e trazia as respostas todas ao colo como braçadas de flores. Irmã...
Agnes de cabelos e olhos pretos ria deliciada com a paisagem, com a companhia, com as férias.
Ele via-a pelo espelho retrovisor. Ela observava-o. Ele achou graça aos seus olhos claros e cabelo louro. Uma descendente dos Hunos, ou Alanos... Sorria interiormente. Thor!
Alice continuava a explicar a Reforma agrária e a sua necessidade adiada pela impossibilidade dos senhores da terra. Ah! Lindo, tanto verde.
- No verão é sêeeco? Impossible!
Verdade. Seco e quente. Quente e seco e a humidade só nas costas dos que ainda trabalham! Na barriga apenas a fome e na alma a recordação do sonhos adiados.

Conversar faz fome. E sede. Alice sabe onde há uma tasca com comida regional, petiscos sabores alentejanos.
Ficaram sentados frente a frente, numa mesa de madeira encardida de molhos e gordura, sebo das mãos, saliva e suor de histórias e vidas.
Explicar a ementa a um estrangeiro é tarefa difícil, principalmente se eles querem saber tudo. Como se faz? A que sabe?
Tenho cabeça de borrego assado no forno. Está uma delícia!
Foi a cara dela e o olhar de repulsa que o fez decidir-se. Aquelas covinhas nas faces e os olhos incendiados de recusa, os cabelos soltos a afagarem o peito arfante e os lábios a gritar: Não! 
Hoje tem a certeza que foi isso que o decidiu.
Uma cabeça para mim.
Ele olhava-a desafiadoramente. Sim uma bela cabeça de borrego. Com vinho, pão e azeitonas.
Os outros sorriam indiferentes. O vinho é bom? E o pão? E as azeitonas?
Ela, sempre de covinhas na face - só hoje percebe  como essas covinhas eram expressivas e a traíam, nem ela, nem ele sabiam que a traíam – mexendo-se intranquila no banco de madeira corrido e ar inquieto.
Horrríbel... quem conxegue comerrr isssso?
E apontava com o indicador, no interior do prato de barro, a cabeça de borrego, de dentes alvos a rir...
As outras sorriam condescendentes. Não era assim tão mau. Apenas um petisco.
Ele ficava a pensar que diferença haveria entre uma perna, uma costeleta ou a cabeça do animal? Afinal não estava morto? Desde quando precisamos fechar os olhos para não sabermos o que comemos, ou engolimos?
São os olhosss axim... axim a olharrr prra nósss! E exa boôca!
Olhos? Estas coisas esbranquiçadas?
Com o garfo ia retirando das órbitas as esferas brancas e gelatinosas. De boca aberta provocava-a, mastigando lentamente, mostrando a satisfação de absorver todas as imagens que o borrego tinha visto. Eram imagens que se transferiam para ele. Duma vida que terminara para outra que se iniciara há 26 anos. Ervas, montes, verdes, água, sol e mais sol. O sol deu-lhe sede e o vinho era bom.
Elas tinham pedido queijo, pão e vinho. Ele sorria, enquanto desmembrava a cabeça do borrego. Primeiro as carnes em volta dos maxilares. Carne saborosa, seca pelo forno. Depois retirava os maxilares, como numa operação, lentamente para que ela pudesse ver. Ela reagiu.
Nuncá beijarrei um homem que coôma ixo!

As covinhas na face diziam o contrário. Quero beijar-te, sem que tu o saibas. Saborear os teus lábio carnudos, com sabor a verde dos prados e a vinho e sol. Sim, sempre muito sol. Venho do frio e da tristeza que se afundou na minha alma. Quero o sol dos teus lábios, não me provoques mais. Quero, mas não sei ainda se te quero!
Se ele percebeu o que diziam as covinhas, nunca ela o saberá. Lembra-se é que os olhos semicerrados tinham perdido a curiosidade da cabeça de borrego e atiraram-se para longos horizontes de por do sol. A testa ligeiramente franzida e húmida beijava a impaciência nas costas da mão.

À noite, o Alentejo é um país distante, longínquo mesmo! Uma terra de ninguém com o luar a sussurrar com a  planície. A prometer ... o que não pode premeditar. O luar na UCP!

Kristine?
Sim?
Boa noite, até amanhã!
Booa noite! Dormimos na mesma camarrata?
Sim. Nós aqui, com um corredor ao meio e as outras ali, na outra divisão.
E as covinhas voltavam a brilhar ocultando os olhos, ou os olhos eclipsavam as covinhas?
Então, booa noiiite!
Kristine?
Xim...
E o Alentejo?
Xim, muitoo bonito. Apago as luxes?
Sim, obrigado. Boa noite!

Dali não se viam as estrelas. Dali não se via nada, mas também não era preciso porque o sol teimava, peito dentro, bem lá no fundo.

Kristine?
Xim...
É a tua mão?
Xim...
É suave! E comprida! Atravessou o corredor e acaricia a minha mão esquerda, caída na beira da cama. Como fazes isso?
Num xei.... é o Alentejo!
Ou Frankfurt?
Xega de lá até cá...
E quanto é daqui até aí?
Num xei...
Ainda pensas na cabeça de borrego?
Num xei. A que xabe o borrrego?
Queres provar?
Xim...
E o Alentejo mesmo ali, todo, de luar aberto, inteiro, sobre nós e nós dentro dele, Kristine! Um país tão remoto!


Claro que foste embora. Sei que prometeste voltar. Mas demoraste muito, Kristine. Frankfurt é assim tão longe?

Mas voltei. Fui à tua aldeia buscar-te. Estava um dia de chuva. Mas conxegui lá xegar! E os teus olhos tão abertos e tão verdes! E a tua mãe a perguntar quem é? E tu a esconderes-te a dixeres, é uma amiga. Eu xou xó uma amiga?

Frankfurt é assim tão longe Kristine?
Sssim, muitos quilómetros! E entre eles muitos metrros e pessoas, interesses e vidas. Ssse quiserres eu mostrro-te!
Não sei se quero! Sabes porquê? Porque vocês não falam da guerra, nem do mal que fizeram aos outros países. Encolhem-se, fazem de conta que não aconteceu nada, matam-se a trabalhar, certinhos como os relógios suíços e a beber cerveja. YA! Não quero ir enquanto não encontrar algumas respostas ao porquê?

Porquê, Kristine?
Num sssei. Lá ninguém quer falar dissso!

Chego do trabalho de pasta na mão e ela está sentada na beira da cama a enrolar as meias dele.
Isto é uma família Kristine?
Sssim, porque não?
Porque não? Então e as malas?

Voltas?
Sssim, eu volto. No dia dezooito ás vinte horras.
Ou no dia vinte às dezoito horas? Dezoito ou vinte?
Voltas mesmo?
Sssim, volto.

Não disseste o mês, Kristine. Nem o ano. Nem eu sei se ainda aqui estarei. O contraste das tuas covinhas com os teus olhos confundem-me, não sei a que devo prestar atenção. A tua boca carnuda e brilhante, as covinhas, os olhos, o pescoço, o teu corpo...
Kristine? Porquê?

Não sei viver em Frankfurt. É cinzenta e fria. Imagino-me sempre dentro dum filme de guerra. Que já tinha acontecido ou que iria acontecer. Na zona velha, em cada esquina procurei ver um judeu morto, gazeado, de filhos pela mão e as mulheres e homens de preto a segui-los de mala na mão. E em cada amigo teu tento ver o descendente do general que os mandou matar. 
Este deve ser seu filho ou sobrinho.
Aquele é parecido com o Joseph Goebbels, antes de envenenar os filhos... aquele tem o mesmo ar do outro ... do Hess. Não quero ir mais aquela praça. Há lá um homem sempre encostado à esquina, é tal e qual o Henrich Himmler. Só tranquilizei mais um pouco quando passamos na Ponte de Ferro- Eiserner Steg, sobre o rio Main, e a parte velha ficou para traz.
As ruas de Frankfurt são grandes e cinzentas em maio, mas não posso olhar os prédios. Estou sempre a ver quando aparecem os aviões e Hermann Goering, de capa preta aberta, a esvoaçar e de dedo em riste na minha direção. Até no Bethmannpark, no bairro Nordend. A sua muralha consegue manter longe o barulho do trânsito do lado de fora e por isso é um lugar muito tranquilo. Não combina muito com Frankfurt... mesmo assim eu estou sempre à espreita dos campos de morte, acolá atrás das árvores...
Cheira-te a fumo? E a gás? O teu pai era polaco? Porque morreu? Ainda tens família na Polónia?

Existiram pelo menos três tipos de cúmplices do ditador alemão: os auxiliares na fundação e organização do partido nazista, a partir de 1920, os membros do partido em funções de Estado após a tomada do poder, em janeiro de 1933, e os militares propriamente ditos, independentemente de terem ou não sido membros do partido nazista.

Não conseguia dormir à espera que me viessem bater à porta e levarem-me. Dizias que as pessoas eram muito amáveis e eram. Muito certinhas, como aqueles teus conhecidos que se recusavam a dar-nos o número de telefone porque não tinham mais tempo para nós. O almoço tinha sido bom, mas não tinham mais tempo para nós. Não tinham tempo para manter uma relação de amizade connosco. Mas eles sabem o que aconteceu e não falam. Sorriem não sei bem a quê. Escondem-se deles, querem esquecer e nós estamos a mais. Eu estou lá mas a ser empurrado para fora, para fora...

Não é exagero dizer que, além da força desses braços direitos, as atrocidades nazis não teriam acontecido sem o apoio de expressiva parte da população alemã - o plebiscito que deu poderes plenos a Hitler teve o apoio de 90% da população. Como tanta gente pode ter apoiado essa barbaridade?

Eu não consegui, Kristine! Não consegui viver com aquelas memórias a agrilhoarem-me os sonhos, a espicaçarem-me a alma. Foi aqui. Este “Foi Aqui”, vestido com a farda e chapéu imperial, botas pretas de cano alto, fivelas e botões dourados, negros de morte, acordava-me de noite, não me deixava dormir, nem pensar de tão assustado que estava. E as falas? São sempre iguais às dos filmes de guerra! Liebe... Krieg... Tod...  Hunger!

No início da ditadura nazi a economia alemã cresceu, mas isso também aconteceu em boa parte do mundo e Hitler beneficiou dessa confiança.

O cheiro a morte ainda era pior. Onde quer que estivesse, atravessava-me o corpo. Aquele cheiro a gás e morte! E as roupas espalhadas aos montes, óculos e dentaduras, mais além, esqueletos noutro lado. Esqueletos de famintos, valas de terra a clamar justiça.
Levaste-me à praça Romerberg e encontramos à Gerechtigkeitsbrunnen, a Fonte da Justiça. É linda, a deusa da justiça com uma balança na mão, mas eu não posso deixar de ver o exército perfilado com bandeiras negras e vermelhas, nazis. Não consigo deixar de ver...

Dizes que quando coroavam um imperador, os habitantes desta cidade podiam aproximar-se da praça. Da fonte jorrava vinho e assavam-se espetos de carne de boi. Quando me contas isso ficas com um ar sonhador e voltas a apetecer-me, enquanto falas e falas...

A maioria dos alemães desconhecia a extensão dos crimes que os nazis cometiam. Havia uma absoluta falta de informações sobre o que ocorria, por causa da implacável censura a todos os meios de comunicação. E, em terceiro lugar, reinava o medo na Alemanha. Policial e brutal, o governo nazi não hesitava em torturar, assassinar e fazer desaparecer do mapa os que ousavam discordar.

Regresso depressa. Depressa, Kristine. Tenho frio. Tenho frio do sol que faz em Lisboa, da luz do Castelo, da luz do Tejo. Depressa, Kristine!

E tu voltas?
Ssim, eu volto. No dia dezzooito ás vinte horras.
Ou no dia vinte às dezoito horas? Dezoito ou vinte? Dias ou horas? Voltas mesmo?
Sssim, eu volto.

Kristin, não te ouço, porque não voltas?
Sssim, volto. No dia dezzooito ás vinte horras.

Não disseste o mês, Kristine. Nem o ano. As velas já se apagaram e o vinho branco está quente.
Passou tanto tempo. Já viajei tanto dentro de mim. Já fui e vim. Não pude esperar mais. Já fim e vui. Já não consigo ouvir mais o rio Moldau!
E com a memória a atormentar-me, com vontade de esquecer, Kristine, eu não tenho mais vontade de dobrar as meias, sentado na minha cama, a pensar na minha mãe e em ti! 

O Algarve é aqui tão perto e a Margarida tão jovem e suave, tão esguia, sorriso doce, de cabelos pretos e olhos árabes. A Margarida gosta tanto do mar, do vinho branco fresco e bacalhau assado, Kristine!...



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NOTAS

Amigos do inimigo

JOSEPH GOEBBELS
CARGO PRINCIPAL - Ministro da Propaganda do nazismo
No nazismo, Goebbels controlava as informações que chegavam à população - em reuniões matinais com jornalistas de Berlim, determinava quais notícias deveriam ser publicadas ou ignoradas. Também supervisionava artes, música, teatro, literatura, rádio e cinema
QUE FIM LEVOU - Suicidou-se em 1945, em Berlim, junto com a esposa, depois de envenenar os seis filhos
RUDOLPH HESS
CARGO PRINCIPAL - "Ministro sem pasta" do nazismo
Grande amigo de Hitler, com quem esteve preso na década de 1920, Hess era uma espécie de confidente e secretário particular do ditador. Praticamente nenhuma lei nazista foi promulgada sem a assinatura desse ex-militar
QUE FIM LEVOU - Capturado pelos britânicos em 1941, Hess foi condenado à prisão perpétua e morreu em 1987
REINHARD HEYDRICH
CARGO PRINCIPAL - Chefe do escritório central de segurança
Auxiliar direto de Himmler na chefia dos serviços de segurança, Heydrich deixou triste marca quando foi nomeado governador de territórios da atual República Checa, em 1941. No cargo, promoveu execuções em massa para eliminar a resistência aos nazistas
QUE FIM LEVOU - Morreu em 1942 em decorrência de ferimentos em um atentado a granada contra seu carro
HEINRICH HIMMLER
CARGO PRINCIPAL - Diretor do serviço policial e militar nazista
Chefe supremo da polícia secreta (a Gestapo) e das forças militares do partido nazista (as SS), Himmler era também responsável pelos campos de concentração. Ele foi um dos principais formuladores da política de extermínio de milhões de judeus e outras minorias
QUE FIM LEVOU - Capturado pelos Aliados, Himmler suicidou-se com veneno em 23 de maio de 1945
WILHELM KEITEL
CARGO PRINCIPAL - Marechal das Forças Armadas alemãs
Depois de Hitler, Keitel era o homem mais poderoso na máquina militar nazista, ajudando a dirigir a maioria das campanhas militares alemãs durante a guerra. Alguns historiadores o consideram o principal estrategista militar da Alemanha nazista
QUE FIM LEVOU - Capturado pelos aliados em 1945, Keitel foi condenado ao enforcamento, morrendo em 1946
HERMANN GOERING
CARGO PRINCIPAL - Chefe militar da Força Aérea
Além de líder da Força Aérea, Goering tinha poderes para dirigir a economia e os esforços de guerra. Não à toa ele foi designado por Hitler em 1939 para sucedê-lo, caso o líder viesse a morrer
QUE FIM LEVOU - Depois de render-se aos americanos no fim da Segunda Guerra, em 1945, Goering foi condenado à morte, mas suicidou-se por envenenamento enquanto aguardava sua execução
ALBERT SPEER
CARGO PRINCIPAL - Ministro dos armamentos e da produção de guerra
À frente de seu ministério, Speer usou trabalhos forçados e mão-de-obra escrava dos campos de concentração, permitindo à Alemanha nazista ampliar sua produção de armas durante boa parte da Segunda Guerra
QUE FIM LEVOU - Capturado ao fim da Segunda Guerra e julgado pelos Aliados, Speer admitiu a culpa e cumpriu 20 anos de prisão. Foi libertado em 1966 e morreu em 1981
JOACHIM VON RIBBENTROP
CARGO PRINCIPAL - Ministro das Relações Exteriores
Em seu cargo, esse velho amigo de Hitler exerceu uma política de pressão constante contra os países vizinhos da Alemanha para obrigá-los a adotar medidas repressivas contra os judeus e aceitar a implantação de políticas de apoio aos nazistas
QUE FIM LEVOU - Capturado pelos britânicos em 1945, Ribbentrop foi julgado e condenado à morte. Morreu na forca em 1946