quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

O meu cão Porto



Lembro-me quando ele chegou a casa. 
Era Inverno e acordamos sobressaltados com as pancadas na porta. O tio João Manuel da Várzea veio trazê-lo preso por uma corda. “É um sabujo, veio de Castro!”
Ainda pequeno, talvez quatro ou cinco meses, segundo meu pai, talvez mais, de acordo com o homem. 
As patas como punhos fechados, o peito largo e possante, e as pernas compridas indicavam a meu pai, que iria ser um belo animal.
“Porto, anda cá Porto!” Assim o batizou o meu pai, sem mais, nem menos. E o animal parecia responder, abanava o rabo e com ar tímido procurava os afagos nas mãos dele. Eu tinha algum receio e curiosidade. Era grande e escuro, mas tinha um ar amistoso. Foi o meu companheiro de muitas aventuras, ditas e desditas, embora a sua boca enorme, com os dentes brancos, fosse sempre, para mim, uma fonte de preocupações...
Aos poucos cresceu e era um belo animal! Possante, destemido, dava coragem a qualquer um. Até a minha mãe dizia que com ele podia atravessar a serra, à noite, sozinha. 
O Tio João da Fonte também tinha um cão possante e nalguns domingos, para combater o tédio e acrescentar alguma adrenalina à sua vida, vinha até nossa casa, para pegar os cães. Falavam do tempo, quem tinha nascido e morrido em Cunhas e por fim 
- Vamos lá comadre? 
A minha mãe ria-se a lembrar-se das lutas de cães, em casa do pai. O meu pai ficava contrariado, não gostava de ver os cães à luta, mas parecia mal, virar as costas a um desafio. Era dar parte de fraco, de medo de perder…
- Tire a coleira de pregos ao seu cão, compadre!- dizia minha mãe.
O meu pai ia soltar o Porto e no largo, em volta da casa dava-se início ao espetáculo: Os cães engalfinhavam-se, quase sem ladrar ou rosnar e tentavam abocanhar o pescoço do outro. 
- Parecem dois homens assim direitos! - dizia minha mãe, entre o divertido e preocupada, com o desfecho.
Os cães mantinham-se de pé, rodopiavam a tentar morder o outro, descobrir o seu ponto fraco, com os olhos em chamas, e por fim, num golpe de maior destreza, um dentava o outro e já não mais o largava até que era preciso ir buscar uns baldes de água para os separar...
Cada um agarrava o seu e o combate estava terminado, entre latidos, saliva, sangue e raiva, ou por uma vitória clara, ou por um empate técnico. Em qualquer dos casos, haveria sempre uma próxima vez.
Eu gostava que o Porto ganhasse, mas sempre me afligia quando via sangue e ficava repartido entre o aplauso da minha mãe e a reprovação de meu pai, que não concordava, achava selvagem esse costume, mas não tinha coragem para dizer não. A minha mãe ria-se, voltava às memórias da casa do pai e dizia:
- Deixa lá Zé, mais buraco menos buraco não faz mal, não queremos a pele para fole de farinha!
O meu pai mostrava o seu descontentamento, “ Ele esfrega-lhe os lábios com piripiri e deita-lhe pólvora moída na comida, para ficar mais nervoso e com mais garra... Isto é bárbaro!”
Assim se iam passando os dias, com o Porto sempre a meu lado, mas naquele dia chorei abundantemente. O meu cão Porto, castrejo, castanho às manchas claras e escuras, alto, garboso e possante, revirava os olhos, espumava da boca e contorcia-se no terreiro, como eu nunca tinha visto.
- Acode Zé! - gritava minha mãe.
O azeite ou sabão. É o veneno. Abram-lhe a boca com um pau. Assim atravessado para não morder a língua e agora deita azeite. Para vomitar. Vomita. Vomita Porto. Mais azeite. Mas assim não, está a escorrer para fora. Segura a cabeça.
O azeite borbulhava ao fundo da boca rósea, ao mesmo tempo que o cão arfava, cada vez mais lentamente e os olhos reviravam-se numa agonia de despedida a lembrar-se das nossas corridas e brincadeiras: Apanha Porto, vai buscar o pau, vai Porto. Anda Porto, não te vás ainda. Quem brincaria comigo? Não Porto. Não fiques frio e amarelo. Porto! Porto, Porto, meu amigo…que me deixas nesta solidão…fria de morrer! Porto! Quem me lamberá as feridas como tu? E como vou dormir debaixo da "canacipe" sem ti? A quem afagarei? Quem me faz companhia enquanto meus pais não chegam? Como posso ir mais longe que o terreiro sem ti, Porto? Portu... meu amigo, meu irmão, não morras… Portu…Poortuu… não vás já, uma última corrida antes de ires... Pooortuuuu…
- Deixa Zé, já não vale a pena. Foi-se! Perdeu-se o cão e perdeu-se o azeite e tão caro que está. Que pena! Com o que gastei com ele dava para alimentar um porco!
O meu pai, com ar resignado, arrastava-o pelas pernas e com a enxada, silenciosamente abria-lhe a cova, no quintal, no canteiro das flores, e só mais tarde recordávamos os melhores momentos da vida do cão e abríamos a porta à saudade.
- E agora, pai?
“Deixa lá, qualquer dia arranjamos outro”!
Outra vez aquele muro alto com tecto escuro, inexpugnável, a circundar-me, a agarrar-me... Tinha de fugir!
Uma parte de mim morreu e outra nasceu com o meu cão Porto!

3 comentários:

  1. Alexandre Sousa12/27/2012

    Pronto, reconheço: transformou-se num hábito adquirido passar por aqui, repousar um pouco, deliciar-me com a escrita. O repouso é emotivo, dá gosto, a leitura, essa, não dispenso.
    Um abraço. Foi um privilégio te-lo conhecido.

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  2. Obrigado, Alexandre. É muito estimulante apreciar o seu comentário. Apareça sempre! Abraço

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  3. Caro Manuel

    Acabei de ler os seus textos sobre "A Casa" e o "Cão Porto". Tentei colocar um comentário no blog mas aqui deve ter funcionado a minha azelhice e não ficou nada. O que lá escrevi foi isto:

    "Acabei de ler dois belos textos seus, sobre a Casa e o Cão Porto. Admirei a sensibilidade da descrição, a subtileza dos retratos que dá do seu Pai e de sua Mãe e todo o espírito do Soajo que emana da narrativa. Continue. Dentro em pouco terá um conjunto de histórias suficiente para fazer um livro sobre a sua serra.

    Um abraço do LUIS L.F.

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