Monólogo (exercício)

 Como vim aqui parar? Olho em redor e não consigo lembrar-me. Parece um sonho, eu aqui em cima desta prancha e as pessoas lá em baixo à espera que salte. Olham cá para cima e percebo que desejam que eu me atire... assim sem mais nem menos. Mas esta altura é enorme! Sinto as pernas a tremer e turva-se a vista. Isto é mesmo alto ou é o meu medo a impressionar-me? Será isto um jogo, como aquele que uns tipos se atiram das pontes abaixo, com cordas nos pés? Não, eu não tenho cordas nos pés, tenho cordas é na cabeça, não me deixam pensar, nem agir, saltar, sei lá... E se eu voasse? Tantas vezes sonhei voar... Porque estão à espera que salte? Fui condenado? Fiz mal a alguém e agora tenho de pagar? Não, não fiz mal a ninguém... Eu sou o presidente, fiz pontes, estradas e rotundas, ajudei os velhinhos, as crianças, as viúvas, os desalojados... ajudei a paróquia, apoiei as freguesias, as comissões de festas do concelho, das escolas, dos centros de saúde,  dos bairros, alojei uns e desalojei outros... a cruz vermelha, os bombeiros... ai que me ia escorregando o pé... não percebo porque tenho de saltar...  os escuteiros,  os Lyons Club, o clube de futebol, de râguebi, de ténis... arranjei emprego para a malta da Jota, do partido... sim, tudo isso só foi possível pelos acordos com os construtores... retirei a minha parte nalgumas negociatas, guardei a massa no estrangeiro... forjei provas contra a oposição, alterei as atas, o PDM, mas isso todos fazem. Mas porque raio estou eu em cuecas de renda  e de camisa às flores? Isto é uma partida? E que faço eu nestas alturas? Onde está o meu secretário? E o tipo da Assembleia? E o da comissão do partido? Ah! Já sei! Isto é uma partida da minha secretaria! Ou da minha mulher? Será que descobriu? Não era preciso tanto... aquilo não era bem assédio... ela faz-me crescer água na boca...  bolas... salto? Vou saltar. Vou provar a todos, a essa camarilha da oposição quem é o presidente! Estou a transpirar... mas, vou saltar.  Ah! Já sei... aquele pó que a secretária me deu... turvou-me a voz e a lucidez... afinal não é uma prancha, é só um degrau das escadas... bolas... querem um discurso? Ah! Hoje... as celebrações do 25 de Abril... estou a recuperar a lucidez...vou discursar... agora: - Amigos...Povo...