segunda-feira, 6 de julho de 2020

Guilhermino



A aldeia e arredores dormem tranquilamente. 
Hão de acordar cedo. Mas, mais cedo que as aldeias, acordam os animais dos montes e os galos e só depois, o Guilhermino. 
Desde cedo os pais lhe notaram uma estranheza. Tinha dificuldade em sorrir e não dirigia o coração no olhar para os olhos da mãe e do pai, nem para ninguém.
Crescera a evitar o contacto com os outros e baixar a cabeça para o chão, quando alguém o chamava. E julgando desviar os olhos, julgava esconder-se do olhar dos outros, evitando que os outros o vissem. E de tanto porfiar, foi-se tornando invisível.
 Sempre escolheu estar só, com as suas pedras, os seus bugalhos, a descobrir os segredos que estes refletiam da sua alma, num percurso de silêncios e invisibilidade das emoções e dos sorrisos ausentes. 
Para Guilhermino tudo era difícil.
Apesar de todas as maleitas tinha-se feito um rapagão. O pior era quando os outros o chamavam para o trabalho, para as danças, para a conversa ou divertimento, isto é, para a vida em comum.
Guilhermino olhava-os aborrecido, reagia com manifesto desagrado e corria a meter-se no seu buraco. Um lugar escuro, sombrio e longínquo.
O moço é chocho! - diziam a rir, enquanto abanavam a cabeça a reconhecer a impossibilidade de o compreender.

Após a morte dos pais, vive sozinho num casinhoto encostado aos outros, mas só nas pedras da parede, porque a alma vagueia pelas sombras e inquietações de quem não pode estar com os outros.

É invisível quando amanha a horta, planta as couves e as nabiças, as cebolas e as alfaces, as batatas e os feijões. Pode ser invisível, mas a vida tem premências e exigências que é preciso satisfazer!
É invisível quando pastoreia as ovelhas, pelo Bucanal adiante até avistar a veiga da Várzea.
Regressa a casa, tarde, pelos caminhos que descobre solitários, às escondidas, como se a vida pudesse ser contornada nas suas esquinas, menos duras e inflexíveis que os vizinhos!
Não chega a sentir humilhação na sua condição de solitário, porque para isso é preciso estar dentro dum conjunto de referências e abraços da comunidade. Vive numa fronteira entre o possível e o desejável, onde a luz ofusca e a sombra engrandece, mas já dentro da sua humanidade.
Mesmo quando os rapazes mais audazes vão sorrateiramente empurrar o bolo da pedra, junto ao borralho, por uma fenda na parede, ele não lhes reconhece a existência e diz para si próprio, 
o raio do bolo tem sono.
 Não acredita noutra possibilidade para o bolo cair. Ele não tem vontade própria, porque cai? Guilhermino está fora, apesar de viver dentro. Vagueia pelos ares, observa a terra e o pó, mas não se lhes mistura.
Não sabe explicar como lhe aparecem batatas à porta, às vezes couves, ou um bocado de pão, embrulhado em folhas de couve. 
Para ele é um mistério. Há vontades que a vontade desconhece.
A aldeia divide-se entre a aceitação e a exclusão. Também eles preferem ficar cegos e não o ver, ou pelo menos só ocasionalmente. Cada um faz a sua vida, ajudam-se mutuamente, quando necessário, são solidários, mas aquele é diferente... e recusam-se a vê-lo, vivente subalterno, porque não o reconhecem como um igual. É diferente! Não é mensageiro do diabo, se deus o marcou, algum erro lhe topou, mas também não é a imagem e obra de Deus. 
Vagueia por ali, no espaço intermédio.
A consciência dessa diferença manifesta-se no agradecimento a Deus por não ter castigado nenhum dos seus filhos e por não existir ninguém na família com aquelas características, enfim, chocho!
Não se sabia porque Deus tinha castigado aqueles pais, que mal teriam feito, mas Quem tudo sabia e tudo podia, lá teria as suas razões.
Não havia conversa, não ouvia, nem era ouvido, não era reconhecido, nem visto, não existia na zona clara da consciência, apenas na penumbra esfumeada da memória.
Havia muita coisa que ninguém sabia explicar, e ainda menos ele próprio. Coisas da vida, da morte, do dia e da noite!
Também ele não sabe explicar porque vem de noite aquela criatura meter-se com ele na cama, afagar-lhe o corpo com as mãos até os membros endurecerem, possuí-lo e ir embora na calada da noite, sem um ai, ou um beijo.
Ele pensa que é um sonho, mesmo quando olha para a cama manchada, e a porta entreaberta, o cheiro acre-doce do sexo.
Na primeira noite, ainda estremunhado, sentira uma mão quente no meio das suas pernas nuas. E gostou. Pensou em gritar e fugir, mas aquele calor quente no meio do sonho, tanto podia ser realidade como invenção sua. Deixou-se ficar quieto a saborear a doce surpresa. Quando por fim descobriu que o seu corpo se desflorava em gritos e estertores e a carne humedecida esquentava, disse, obrigado.
Não sabe quem é, se nova ou velha, mulher ou bruxa. Nem sequer sabe se é homem ou mulher. Alguém que lhe entrava na cama e não na vida. Seria incapaz de o reconhecer de dia, mas já lhe conhecia o corpo e as mãos. E durante muito tempo deixou-se ficar preso naquelas mãos que o afagavam com ternura. E nos braços fortes que o apertavam.
Depois, à medida que o tempo ia passando, começou a fixar-se nas pernas longas e quentes que o abraçavam e tremiam, a fervilhar de gozo. Aquele corpo quente e suave que se lhe oferecia, em convulsões de prazer e gemidos de luxúria. 
A porta fica sempre na taramela. 
As noites vão correndo a intervalos de gozo e prazer.
Mas como não há mal que sempre dure, nem bem que se não acabe, as visitas começaram a ser espaçadas até que foram interrompidas, sem se saber porquê!
Essas noites tinham sido os momentos mais importantes da sua vida e inexplicavelmente deixaram de existir, foram riscadas, apagadas. Talvez nunca tenham existido, pensava Guilhermino. 
Há o prazer da carne, há o antes e o depois, que é nada. Talvez seja a minha cabeça doida - filosofava ele, abraçado na insónia.
Teve um pressentimento indizível, quando ouviu o sino a tocar a defuntos. Era uma compressão no peito até lhe chegar à garganta que não deixava passar, nem a sopa, nem o presigo.
Ele deixou-se ficar todo o dia com as ovelhas, longe da confusão e das pessoas. Nunca tanto olhara para o Castelo de Lindoso e a serra Amarela, bem lá mais longe do que a sua vista alcança.
Foram várias as noites em que ficou acordado. Ouvir os ruídos e silêncios da aldeia. Deitar, acordar, trabalhar e comer. Pessoas e animais, ventos e chuvas. E outras coisas invisíveis, que vagueavam pelos caminhos da noite, nas veredas do pensamento solitário, entravam pelas frinchas e se ululavam nas mantas da cama.
Nunca mais a taramela se mexeu durante a noite. Nunca mais.
Quando um rapaz deu a notícia no Eiró, 
o ti Guilhermino está a chorar, 
ninguém queria acreditar que ele tivesse retornado ao mundo conhecido das emoções e sentimentos. 
Quem? O Guilhermino?
Algumas mulheres curiosas que se alimentam das desgraças alheias vão a correr ver o sucedido. Sentado, em frente a sua porta, Guilhermino chora copiosamente, esconde a cara debaixo do braço e aponta para a taramela, silenciosa 
Entreolhadas, as mulheres olham-se entre o riso e a inquietação. 
Que quer ele? Porque chora e aponta para a porta?
Sem respostas e condoídas da tristeza alheia, uma a uma desandam dali, 
Coitado,
deixá-lo, ele é chocho!
Guilhermino só voltou a ser visível quando morreu. É muito melhor evitar diversos predadores imaginários do que ser comido por um real.
Partiu à descoberta de todos os invisíveis que vagueiam por este mundo e o outro. E por ação da morte, a parte tornou-se o todo, o escuro ficou claro, a inquietação tranquilidade e a tempestade dissolveu-se num bafo sem fim. Eterno.
É preciso fazer-lhe o funeral e apesar de se saber que nunca se tinha confessado, não se sabe se tinha sido batizado. Quem o vai vestir e aprontar? Quem fará a vigília noturna? Quem lhe vai abrir a cova? Quem o levará em ombros até à entrada no paraíso? Chamar o padre será o mais fácil!

2020
Manuel Rodas

terça-feira, 23 de junho de 2020

Diretor executivo



Farol da Guia, Macau


O diretor executivo


Teresa TsingTao de braço esticado, desviou o olhar do Farol da Guia, puxou para si um apontamento da última reunião do Conselho Administrativo e leu:
- a entrada em funcionamento das duas delegações; 
- o financiamento a 10 anos, para regularizar o crédito anteriormente concedido;
- a reorganização dos serviços da empresa com a criação da direção comercial e loja online;
- a apresentação, pela primeira vez, de saldo positivo. 
Recordou o que o diretor executivo dissera na reunião: a empresa tinha de se libertar do ambiente demasiado influenciado pelo passado. A empresa, se queria ter uma dimensão global, teria de pensar globalmente. Tinha de introduzir os mais modernos métodos de gestão e planeamento estratégico. Não podíamos ir para o mundo global, com um caderno de apontamentos e um gravador na mão. A empresa não poderia estar condicionada por imprevistos. Todos eram responsáveis pelo sucesso e êxito e, portanto, todos tinham de “vestir a camisola” da empresa, tinham de ser uma equipa e cada um orgulhar-se dos sucessos de todos. O destino não podia ser uma fatalidade, mas sim uma possibilidade, contrariada ou confirmada pelas nossa vontade e consciência de existir. Estes eram os novos desafios num mundo global, altamente competitivo.
Apesar de ela não concordar totalmente, pois desconfiava dos resultados e pressupostos do novo liberalismo, bem conhecia o que significavam os “colaboradores”, não se via a comer hamburgers, ou beber cerveja todos os dias, mas apesar disso, sorriu a imaginar-se a passear em Nova Iorque ou em Londres.
Sem se ter apercebido, a mão esquerda descaiu ligeiramente e pousou no colo. Só depois de ter mentalmente recordado a reunião, tomou consciência que a mão se fixava no ventre e teimava em não sair de lá. Foi nessa altura que teve um pressentimento. Seria possível? Não podia ser...
Apenas horas mais tarde, já deitada na sua cama, quando fechou os olhos, pode retomar as preocupações que tivera no escritório. Estaria grávida? Fez e refez cálculos, mas não chegou a nenhuma conclusão. 
Se estivesse, como lidar com a situação? Iria fazer o teste de gravidez e logo se veria. Nunca tivera a oportunidade de pensar ou desejar ser mãe. O estilo de vida, as exigências do trabalho e a história pessoal nunca lhe deixaram nem tempo, nem vontade de pensar nisso.
Nos dias posteriores o volume de trabalho aumentara na empresa e só na semana seguinte soubera o resultado, grávida de dois meses. 
Todos os dias revia as suas decisões. Seria rapaz ou menina? Iria informar o pai da criança? Poderia contar com o seu apoio? Como reagiria ele? 
Ela bem sabia que ele não poderia fazer grande coisa, a não ser, dar-lhe uma pequena parte da sua vida, alimentar-lhe alguns sonhos, algumas prendas e quem sabe, talvez um pouco de amor. Era, provisoriamente, diretor da empresa, casado, pai de um rapaz, uma família estável e socialmente valorizada na comunidade. O que acontecera durava já há dois anos. Ela nunca pedira nada e ele nada prometera. Aquela relação preenchia o vazio que sentia desde que os pais tinham falecido, prematuramente. Ficara só, mas a força de vontade de prosseguir a vida, o trabalho e um pequeno grupo de amigos era tudo que lhe restava. 
Nem se lembrava muito bem como acontecera. Ela demorava-se no trabalho, tentando responder às exigências do diretor, com docilidade, sempre disponível para a empresa, a salvaguarda do seu posto de trabalho, as reuniões até tarde, as deslocações no território, mas o que precipitou tudo foi aquela viagem, dois anos antes, a Cantão.
Foi um olhar de fim de tarde, um sorriso convidativo, uma mão que descaiu no intervalo dum chá, muita solidão e o desejo de serem amados e... pronto. Que mais é preciso para o amor acontecer?
Os encontros foram fluindo, quer no escritório, quer em casa dela. 
Ele entrava, olhava-a a sorrir, afagava os cabelos, puxava-a para si, os corpos quentes e húmidos gritavam a comemoração do amor desde o princípio da humanidade, desprendiam-se, voltava a olhá-la a sorrir, afagava-lhe os cabelos, afastava-a de si, levantava-se, vestia-se, despedia-se com um beijo nos lábios ainda húmidos e quentes e ... saía. Raramente havia confidências sobre a sua vida particular e muito menos sobre o trabalho. Também não era preciso, pois ela sabia tudo, ou quase tudo, sobre a empresa.
Sempre lhe dera prendas, mas ultimamente, ele trazia-lhe prendas caras, adornos, colares, anéis, medalhões, alfinetes, brincos, onde predominavam as joias, o ouro e, raramente, a prata. Ela podia ver nos embrulhos a origem da aquisição da maior parte das prendas, Hotel Lisboa. Seria ele jogador? Teria sorte no jogo e azar no amor? Ou o contrário? 
Ela sorria, beijava-o agradecida, mais pela atenção e o amor que lhe dedicava, do que pelas joias, exceto aquele anel com o nome dela gravado, Teresa, o qual usava frequentemente.
Sorria a imaginá-lo a entrar na ourivesaria, a escolher as peças, a pensar nela, pagar e sair, comprometido com a prova da sua traição. Sorriam ambos, quando ela punha ao pescoço os colares, ou nos dedos os anéis. 
Ele tinha um jeito especial para a convencer que eram prendas, provas de amor e não recompensas, aliás, ele tinha um jeito especial para atingir o que pretendia. Não lhe dizia que a amava, mas fazia-lho sentir. Ela retribuía com um sorriso de fino recorte, sugestivo, agradecida, mas não convencida. Havia algo dentro dela que não se desprendia e não a deixava ir a correr, de braços abertos, para ele. Não poder imaginar uma família com ele e ser alternativa à esposa não a deixava confortável. Ela receava que um dia, ele a abandonaria, mas não sabia que era precisamente isso que o desafiava, redobrando de cuidados e presentes, numa afirmação do desejo de permanecer. As hesitações e dúvidas dela mais reforçavam o desejo de conquista, de posse e permanência. Ao contrário da esposa, sentia que não era um território definitivamente conquistado. Era necessário revalidar esse compromisso e esse desejo frequentemente. E ela permitia-lhe essa excitante cumplicidade perversa duma relação extraconjugal.
E quanto mais a tinha, mais ele sentia que não a podia ter. Ou porque ela lhe fugia, escorregadia e esquiva, ou porque a sua situação familiar e profissional não lho permitiam.
No escritório, a relação entre ambos era a que vai do presidente executivo, embora provisório, para a secretária, diálogos restritos, orientações precisas e nada de galanteios ou exageros que os pudessem denunciar.
Quando o queria abraçar, ela dizia, amanhã vou ficar em casa. 
Ele sorria. 
Quando ele a queria beijar, dizia, amanhã vou ao jardim, Teresa! 
Ela sorria sempre!
Assim se passaram dois anos. Mas agora estava grávida. 
Ainda por cima ele iria mudar a residência para San Wui, uma pequena cidade entre Macau e Cantão, para a inauguração duma sucursal da empresa. Ela estranhou não ser convidada para o acompanhar nas novas funções. Também não sabia muito bem se queria ir e por isso, não lhe disse nada. Ficaria na empresa e guardaria o segredo para si. O que sempre imaginara, veio a confirmar-se.
Teresa TsingTao tinha anos e anos de prática de decisões difíceis. Foi no regresso duma viagem a Hong Kong e na solidão de sua casa, que tomou a mais difícil decisão da sua vida, seria mãe solteira! Sim, se não o podia ter a ele, havia de ser mãe dum filho dele, que lhe lembrasse todos os dias quão intenso e efémero tinha sido aquele encontro entre duas pessoas que tudo faziam para esconder o seu amor.
Assim que ele souber, não vai querer assumir a sua responsabilidade, vai afastar-se, ou afastar-me a mim, que dá na mesma coisa - assim pensava ela na solidão acompanhada agora pelo fruto da sua aventura.
......
Não eram muito conhecidos os motivos por que Susana Pardal entregou o ofício de despedimento do Jardim de Infância onde trabalhava, em Portugal. As colegas especulavam, as funcionárias olhavam de lado, tentando compreender a razão desta decisão. A direção da Santa Casa da Misericórdia ainda fez algumas perguntas, tentando apurar se havia algum mal-entendido que pudesse ser remediado, ofereceu-lhe a deslocação para outro Jardim de Infância, mas nada a fazia demover. Iria trabalhar num jardim de Infância, em Macau e era para lá que queria ir. O pai tinha falecido no ano anterior e a mãe aceitava as decisões da filha, tentando compreender, mas sem a questionar demasiado, evitando-lhe o embaraço de respostas difíceis ou impossíveis. 
A sua integração em Macau não foi difícil, embora ela considerasse que era um processo na sua vida e como tal...evolutivo.
O Jardim de Infância distribuía a sua intervenção entre os cuidados e assistência e a ação pedagógica e nesse aspeto Susana Pardal sentia-se à vontade. O trabalho com os pais era uma das prioridades na Escola e desde cedo começou a reparar no ar dum pai que, apesar de ausente, transmitia força e energia e que, regularmente, ia entregar o filho na escola. Tinha um olhar que convidava a entrar ...
Mas Susana Pardal não estava tranquila nessa matéria. Não era para isso que tinha ido para Macau. Queria iniciar uma nova etapa na sua vida, viajar e conhecer outras terras distantes exóticas e sedutoras. Macau era um bom lugar, como ponto de partida para novas viagens! Essa convicção era ainda mais reforçada cada vez que vinha a Portugal, de férias.
O tempo foi passando e já no seu 3º ano foi com surpresa que um dia disse a si própria, e se eu adotasse uma criança, aqui nesta terra de que tanto gosto?
Balanceou os prós e os contras, viu os inconvenientes e as vantagens e não chegou a conclusão nenhuma racional. Independentemente doutras razões, sentia um apelo para se dedicar a uma criança e cada dia mais a emoção dessa decisão aumentava na sua alma. Ser mãe! Ser educadora e ser mãe! Porque não? Tinha tanto para dar e ajudar a felicidade dum filho.
Depois dum ano de espera, foi com enorme surpresa que recebeu um telefonema, com carácter de urgência do Serviço Social. No dia seguinte, teria de tomar uma decisão rápida. Não dormiu nessa noite. Foi passar em revista o quarto do bebé!
Ainda bem que já tinha adquirido o essencial para os cuidados prioritários. A roupinha interior e as fraldas, as meias e os casaquinhos, a banheira, as toalhas, a cama e o colchão, as cortinas azuis e o quarto pintado de branco por onde andavam à solta as estrelas e borboletas, em raios de luar, no rio das Pérolas.
- É uma menina. Tem 8 meses. Está um pouco tensa, mas com massagens diárias, muito amor e cuidados vai recuperar bem. - dizia a assistente do infantário.
Depois das assinaturas, de responsabilidades várias que complementavam outras formalidades anteriores e após visitas demoradas ao infantário, recebeu Susana Pardal a bebé em seu corpo e em seus braços. Estremeceu por dentro na convicção reforçada que iria ser uma boa mãe, prometendo-lhe mentalmente que tudo faria para isso. A bebé era uma promessa de vida a palpitar dentro dum carmesim transparente...
No dia seguinte, novo telefonema e um pedido de desculpas, pois tinha havido um engano, bem, não era bem um engano, era mais uma omissão. Se poderia passar pelo Serviço Social no dia seguinte. Estremecera, receosa, Susana Pardal. Não lhe podiam retirar a bebé! Isso nunca!
Afinal o engano tinha a ver com uma herança que faltava referir e tomar as devidas providências. A bebé Lúcia herdara também um cofre com alguns bens pertencentes a sua mãe. A advogada do Serviço Social abriu-o na sua frente, onde, além de duas cartas, havia uma escritura dum prédio alugado, cujo rendimento revertia para uma conta bancária, em nome de Lúcia. Havia, ainda, um camafeu de jade com adornos, colares, anéis, brincos, de várias cores e materiais, onde predominava o ouro e raramente a prata. Era a herança que a mãe tinha deixado à sua filha, antes de morrer, mas a lei exigia que apenas poderia tomar posse, quando atingisse a maioridade, aos dezoito anos. O Serviço Social facultou-lhe as fotografias do conteúdo do cofre, para o mostrar à sua herdeira, quando a mãe adotiva achasse conveniente. 
Surpreendera-se Susana Pardal. Não era pelo ouro que iria amar mais a sua filha, mas se a sua bebé tinha já à nascença um pecúlio considerável, tanto melhor para ela. O que importava é que era linda, como não tinha imaginado antes. Linda! 
Tão pequenina e já com tantas surpresas, pensava para si! Como seria no futuro?
.....

O tempo passa depressa e mais depressa quando se chega a certa altura da vida, onde paramos para pensar o que fazer com o que nos resta. Foi nessa circunstância que o diretor executivo tomou consciência que era preciso continuar a vida, antes que fosse demasiado tarde. Retomar o fluxo das águas do rio, na sua caminhada eterna para a foz. E nesse percurso, quantas margens ainda havia para beijar, campos para alagar e vida para alimentar!
O diretor executivo tinha deixado a mulher e o filho em San Wui, a separação era de comum acordo e efetiva.  Decidira regressar a Macau, ocupando as antigas funções de diretor executivo. A empresa renovava-se todos os dias e todos os dias enfrentava novos desafios e para isso exigia um pulso determinado e uma visão alargada da situação.
Num dia de maior solidão, guiado por mão invisível, a recordar o que tinha sido a sua vida familiar, deu consigo a ver os pais saírem, com os filhos pela mão, no Jardim de Infância, onde tantas vezes tinha ido levar o filho. E lá estava Susana Pardal sorridente, como sempre, a despedir-se das crianças com um abracinho, cabelo atado atrás e bata cor de mar. Foi uma viagem a bordar a memória, do passado até agora, recordar daqueles anos todos e os seus olhos, cor de mar, a florescer no horizonte. 
 O tempo, esse vento criado pelo movimento da vida, empurra-nos para a frente. Não nos deixa adormecer e se por acaso paramos, é apenas para ganhar balanço para prosseguir com mais determinação. Há tarefas a realizar e ele lá está a lembrar-nos constantemente, sem cheiro, nem ruído, como as flores morrem e voltam a nascer no ano seguinte. 
O diretor executivo adorava brincar com a Lúcia. Esta retribuía-lhe atenções que, não fora Susana Pardal educadora, seriam interpretadas por ela, como uma ligeira ponta de ciúme. 
Foram partilhando o tempo, as confidências, o espaço, os passeios de fim de semana. 
Naquele outubro ele não se esqueceu dos bolos lunares para as duas. 
Um dia, Susana pardal disse:
- Porque não ficas comigo?
- Era o que eu te ia perguntar, porque não fico contigo?
Sorriram e num abraço prometeram ser água do rio, chuva e mar, gotas de orvalho nas pétalas do desejo, semente e fruto dum amor prometido e tanto tempo adiado. E Lúcia WengXi sorria ao vê-los assim abraçados:
- Mamã! Papá!
- Adoro esta menina. És um tesouro, Lucieee! - dizia o diretor executivo, abraçando a criança, com uma ternura nunca antes vista.
- É linda, não é? Um amor da sua mamã! Queres ver as fotos dela? Ah! E as fotos do seu tesouro?
Foi com ar progressivamente pálido que o diretor executivo segurou o álbum nas suas mãos e fixou o olhar numa foto, onde um anel revelava a inscrição, Teresa. 
Volveu o olhar para Lúcia e retornou para as fotos.
- E os pais? Sabe-se quem foram? – perguntou ele, tentando controlar-se o mais possível.
- O pai é desconhecido e a mãe faleceu dias depois de a entregar para adoção - disse Susana Pardal, enquanto, desviava o olhar sorridente para Lúcia, e pegando-a ao colo, a estreitava nos braços e a beijava com frenesim maternal, às cinco da tarde, num domingo qualquer de maio, com vista para o farol da Guia, em Macau!

( o leitor, se bem o entender, encontrará o final que mais lhe convier, a si, e ao superior interesse da história, porque os altos interesses da criança deverão estar salvaguardados pelos pais!)

2019, Manuel Rodas

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Calamity Jane

22-6-20


Hoje vi a Calamity Jane
estava sentada no mesmo bar que eu
os mesmos cabelos louros, os mesmos olhos fulminantes
o mesmo sorriso condescendente
mas mais desgastada e curva
sob o peso dos holofotes e das palmas. 

Lembro me bem quando corria o palco dum lado ao outro de chicote na mão a proclamar-se contra o oportunismo e a injustiça.
As botas brilhavam da lama e o ar rendia-se aos gritos de Basta!

Saudades Calamity Jane
estamos velhos e gastos das palmas e agruras do palco do mundo
mas
brilhas em meu coração como a flor de nenúfar entre as águas paradas de melgas e sapos! 

Grita Calamity Jane
grita por todos a quem roubaram o ar e apenas lhes restam as sombras
Grita por todos que ousaram gritar
Grita pelos naufragos do silêncio
caídos de borco nas vielas do fado
Grita Calamity Jane grita
grita sempre.


MRodas

sábado, 13 de junho de 2020

Pintar


Pintura, 2020,  Inês Rodas



Enquanto a minha filha fazia os seus trabalhos de pintura, sentei-me a seu lado e tentei acelerar a conversa. Peguei num papel e num pincel e fomos conversando. O que posso pintar eu, que nunca pintei nada?
- Ouve a música! -diz ela a meu lado.
Sorri, para mim próprio. Quantas vezes não disse isso aos meus pequenos alunos com medo das tintas  e do pincel.
- O que te diz a música?
- O que eu quiser ouvir, ou melhor, o que eu quiser pintar!
Silêncio. O que quero pintar? Ouço a música. Pink Floyd!
Enquanto a inspiração não vinha, comecei por uma clave de sol. Ela olhou de soslaio e sorriu. Percebi a sua condescendência. A parte óbvia da música, a sua representação gráfica da pauta, o símbolo anterior à música que ouvia.
Com pastel imaginei que a clave Sol emitia música e esta se refletia em ondas coloridas na minha mente, que as devolvia em círculos e reflexos coloridos, de volta, formando uma imagem do movimento que experimentava.
A música vinha de longe, sei lá, do final da minha adolescência, e apresentava-se agora, nas mãos da minha filha.
- As cores mais escuras primeiro - conduzia ela a preocupação comigo e com a minha obra.
Quando pensei terminada a tarefa, senti que algo despertava em mim, precisava acrescentar algo, fora daquelas tintas e cores.
- Sinto que preciso acrescentar algo....
- O quê?
-Não sei....
Fui buscar o ferro de engomar e com um papel grosso, torturei as cores no fogo.
-És mesmo experimentalista!
Sorri.
E lembrei-me do amigo João Claro, quando, nos anos 90, me dizia, tens mesmo jeito para a investigação!
Quando consciencializei esta minha “originalidade” descobri também o valor do Se! Quer dizer, eu sempre soube o valor do “Se. Não sabia é que o Se valia tanto!
A primeira e última vez que recorri ao Se foi para fazer a pergunta mais eloquente da minha vida, E SE O MUNDO FOSSE DIFERENTE, PARA MELHOR?
A essa pergunta inicial que resume todas as outras, sucederam-se milhares de perguntas, como é natural em qualquer pessoa.

Achei que o trabalho estava terminado, mas não a minha vontade de encontrar um mundo diferente.
Peguei noutra folha e tentei descobrir formas transitórias, entre este mundo e o outro, o diferente e desejável.
Entretanto, a Inês, enquanto pintava com cores arroxeadas o seu quadro/instrumento musical, introduzia a temática para subverter o mundo: os males do mundo seriam, o excessivo consumo de bens e carne, o machismo, o sexismo, a ostentação do dinheiro e do poder, a insensibilidade e falta de políticas para minorar o sofrimento dos marginalizados. Para alterar a situação era necessário uma consciencialização geral, traduzida numa ação prática e concertada com as diferentes nações e povos, assegurando o direito à diferença, o respeito pela natureza, pelos animais, acesso às artes e à cultura. Era todo um programa de ação política, que eu não me importaria de assinar por baixo.
Voltei a minha página ao contrário e os elementos ganhavam novas significações. Se um mictório  (Duchamp) (1) pode ser uma obra de arte, também o meu quadro poderiam ser duas obras, uma a direito e outra ao contrário. Sorri, a pensar que Se o pintasse nas costas, passariam a ser 3?
Se ela me tivesse ouvido, diria de seguida, excesso de zelo, ou preocupações de produção para alimentar o sistema? Felizmente não ouviu e a coisa ficou só para mim.
Fiz um intervalo, levantei- me e vim olhar a rua. Deserta!
Voltei a sentar- me, peguei em nova folha, mas desta vez, recusaria as tintas e os pincéis. Experimentaria outros materiais. Um mundo novo precisa de novas ideias,  novos materiais mais consentâneos com o equilíbrio natural.

Com os condimentos da culinária salpiquei a folha de odores frescos e longínquos. Se era preciso mobilizar os povos, a pimenta, o colorau e o caril seriam bons representantes dessas paragens. Com cola de madeira diluída em água, com os dedos fui espalhando sobre as cores e recriando novos reflexos dum tempo que se anuncia, mas ainda não chegou, vai chegando!
Ela, enquanto dava vida ao seu quadro, continuava na sua argumentação, criando um modelo de sociedade utópica, que no dizer de Agostinho da Silva (2), não quer dizer impossível, mas sim, que ainda não foi possível!
- Esse cheira bem! O que levou?
- Levou séculos até chegar a Portugal. Quantos homens morreram e quantas mulheres ficaram por casar, para que a pimenta e o caril pudessem entrar no nosso imaginário, na fruição e agora estar aqui nesta obra.
- Pessoa e Floyd?
- Quantos ainda precisarão de morrer para que o mundo mude.
- E Se ninguém morresse?
- e Se todos, em todo o mundo votassem em branco?
- Saramago?

Rimo-nos os três, porque a mãe, que entretanto chegara, ainda tinha assistido a este final glorioso!


https://pt.wikipedia.org/wiki/Marcel_Duchamp
https://pt.wikipedia.org/wiki/Agostinho_da_Silva

MRodas






MRodas, 2020



MRodas 2020


MRodas 2020



segunda-feira, 8 de junho de 2020

Ver gente

Fui ver gente
gente com máscaras, sem máscaras
gente que ri, trabalha, fica em casa
como eu...

Mas tinha de sair e ir ver gente
ver como andam, abraçam
como se sentam e correm
como beijam e sorriem

Olha aquele a tirar a máscara para comer o gelado
E o outro a desviar-se para beber a cerveja no quiosque
Aquela a olhar para trás
E o doutor com ar de cansado
A criança que não quer ir à escola
A educadora a dizer que a criança não sabe o que é o metro, nem metro e meio

A televisão mostra o primeiro ministro a correr o país
Sempre a dizer, é preciso trabalhar, é preciso trabalhar
E o líder sindical a exigir mais testes
E o patrão impaciente a repetir é preciso trabalhar...
E o desempregado a gritar quero trabalhar

O barbeiro de porta aberta
O sapateiro está fechado
Os seguros entreabertos
Outros escrevem, um de cada vez...

Toda esta gente que ainda há pouco
maldizia a chatice da vida
Ei-los agora
cheios de medo a gritar
Quero viver, quero viver
Abraço-vos e grito
Também quero viver, porra!

MRodas

Nesta semana

Bansky



As mais lidas esta semana!
Os EUA em 1. lugar! Vale a pena!


sábado, 16 de maio de 2020

O poeta


O poeta

Cheguei da caçada exausto da dificuldade de
ver e sentir. Deitei-me na caverna a sonhar com
antílopes, cavalos e bisontes

Foi com o sangue deles e com
o meu que pintei as paredes

A natureza trouxe a fome e a fartura, a vida e a morte
Fiz dos passos em terra molhada
a cadência do teu pulsar
e com o dedo molhado de sangue menstrual
desenhei os sulcos do teu rosto
nas paredes frias da caverna que eu sou

O poeta nasceu aí
algures entre as noites estreladas e os gritos de guerra e caça
sombras do tempo desenhadas na pele de todas as mulheres
a memória da nossa tribo
no leite de filhos amamentados
e nos beijos de homens sôfregos de carne e flores

O poeta começou por desenhar todas as promessas realizadas
e na falta de pedra e abundância de sangue
desenhou palavras e...sorriu com sede de maçãs

Tinha inventado aos olhos da tribo
o maior paraíso do mundo, desde as cavernas até o pós atómico
desde as cavernas da alma, ao fogo das estrelas

O poeta esmagou as pedras na mão
e com sangue e pó reinventou o poema!


MRodas

terça-feira, 12 de maio de 2020

Passear a lagosta



https://vivreparis.fr/le-jour-ou-un-celebre-poete-a-promene-son-homard-de-compagnie-dans-les-rues-de-paris/
Para o Jorge 

Queria ir passear a lagosta
Daqui até Cabo Verde
À Boavista e a Rabil.

Inventar a trela que nos solta
Depois de um abraço de despedida
Ó lindas praias do Tarrafal
S. Tiago, Cidade Velha!

Passear a lagosta na Praia
Enquanto olho os teus olhos vermelhos
Tu que sabes os segredos do mar
Os recantos secretos das ondas e dos corais...

Pego em ti ao colo
Como no telefone sem fios
Bastam me as tuas antenas
Para te saber longe sem mim

Vamos expulsar o virús covid
Soprando com força 
Ou matá-lo com a indiferença?

Prefiro o presunto de Soajo
Mesmo sem palhinha....

MRodas

sábado, 9 de maio de 2020

O medo

Escrever sobre o medo é acrescentar sentido à esperança!

O Poema Pouco Original do Medo

O medo vai ter tudo 
pernas 
ambulâncias 
e o luxo blindado 
de alguns automóveis 

Vai ter olhos onde ninguém os veja 
mãozinhas cautelosas 
enredos quase inocentes 
ouvidos não só nas paredes 
mas também no chão 
no tecto 
no murmúrio dos esgotos 
e talvez até (cautela!) 
ouvidos nos teus ouvidos 

O medo vai ter tudo 
fantasmas na ópera 
sessões contínuas de espiritismo 
milagres 
cortejos 
frases corajosas 
meninas exemplares 
seguras casas de penhor 
maliciosas casas de passe 
conferências várias 
congressos muitos 
óptimos empregos 
poemas originais 
e poemas como este 
projectos altamente porcos 
heróis 
(o medo vai ter heróis!) 
costureiras reais e irreais 
operários 
       (assim assim) 
escriturários 
       (muitos) 
intelectuais 
       (o que se sabe) 
a tua voz talvez 
talvez a minha 
com certeza a deles 

Vai ter capitais 
países 
suspeitas como toda a gente 
muitíssimos amigos 
beijos 
namorados esverdeados 
amantes silenciosos 
ardentes 
e angustiados 

Ah o medo vai ter tudo 
tudo 

(Penso no que o medo vai ter 
e tenho medo 
que é justamente 
o que o medo quer) 



O medo vai ter tudo 
quase tudo 
e cada um por seu caminho 
havemos todos de chegar 
quase todos 
a ratos 

Sim 
a ratos 

Alexandre O'Neill, in 'Abandono Viciado'