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terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A Observação

       A Observação



Parecia que a minha vida tinha entrado numa roleta sem saída. Por mais que andasse voltava sempre ao mesmo lugar!
Era naquela escola que tinha feito a instrução primária, era àquela aldeia que tinha regressado dois anos antes, e agora... voltava ali outra vez.
Para trás tinha deixado os colegas em Viana do Castelo, uma experiência pedagógica de articulação com a Escola do Magistério, interrompida pelo então Ministro da Educação, Sotto Maior Cardia.
Voltava a casa dos meus pais, voltava à aldeia para ser monitor de Telescola.
A Telescola era um sistema que permitia aos alunos fazer o 5º e 6º ano e que não poderiam frequentar a escolaridade obrigatória, por residirem em aldeias e locais muito afastados de povoações com escolas preparatórias. Desde 1973 que o Ministro Veiga Simão tinha alargado a escolaridade obrigatória para 6 anos, mas só agora, passados 5 anos, os alunos da aldeia iam beneficiar desse direito.
Eu nunca tinha sido monitor de Telescola. Não recebi preparação para tal e desde logo percebi que se pretendia que o meu papel fosse diminuto, pois os professores das várias disciplinas planificavam as aulas e transmitiam-nas pela tv, a partir do Monte da Virgem, no Porto.
Esperavam que eu fosse um monitor. Abria e fechava a escola, fazia a chamada, marcava as presenças e ausências, distribuía as fichas das respectivas disciplinas e depois da transmissão pela tv, tirava dúvidas e apoiava a realização das fichas de consolidação de conhecimentos. Fiscalizava os testes, que remetia pelo correio e mais tarde recebia a classificação. Regularmente fazia os mapas de controle dos lanches para o IASE e comunicava aos pais a evolução da aprendizagem dos alunos.
A aldeia, apesar de ter cedido gratuitamente baldios para a barragem elétrica D'el Lima, ainda não possuía electricidade.
O delegado escolar informou-me que além dum pequeno gerador, ainda teria por mês, direito a 25 litros de gasolina e 5l de óleo. Os alunos teriam direito a um pão com queijo ou marmelada, um quarto de litro de leite, por dia e de resto... boa sorte!
Além da televisão a preto e branco, havia ainda um estojo de carpintaria para apoio às aulas de Educação Visual e trabalhos práticos.
A escola era uma única sala e estava igual aos meus tempos de primária. Subia-se por uns degraus de pedra. Uma janela e uma varanda, as carteiras em fila, a secretária junto do quadro, uma luz difusa e as recordações da infância a emergirem da minha memória, à mistura com o cheiro a giz e o ar viciado pela falta de oxigénio e excesso de respiração.
A minha professora continuava a exercer da parte de manhã, partilhando, pela primeira vez a sala, à tarde, com outro colega e ex-aluno, que era eu. Nas paredes já não existiam os retratos de Salazar e Américo Tomás, mas o crucifixo, mas as paredes nuas erguiam-se frias, como ameias dum castelo.
Os alunos já me conheciam e esperavam-me com afecto e muita ansiedade. Era a primeira vez que na aldeia ia funcionar a telescola. Eles iam ser os primeiros alunos!
Era um grupo de 18 alunos, mais rapazes que raparigas, à volta de 12 e 13 anos. Três vinham a pé duma povoação a 4 Km, dois eram gémeos. Havia dois alunos ( o Pedro e a Maria) que tinham regressado de França e falavam melhor francês do que eu. Todos tinham feito a 4ª classe no ano anterior e possuíam as aprendizagens básicas para enfrentarem o 5º ano com alguma serenidade.
Eu adorava a minha profissão de professor e tinha de provar a mim mesmo que independentemente das circunstancias, continuaria a gostar da minha profissão e a minha opção estava confirmada. Fosse ali ou em qualquer outro local. Ali, na minha aldeia tinha a oportunidade de continuar a ser um bom profissional. E aquelas crianças precisavam ter um bom estímulo para progredirem. Que melhor exemplo, do que um natural da aldeia, que regressava como professor e motivado para ensinar?
Após o desconforto inicial, arregacei as mangas e deitamos mão à obra. Eu não seria um monitor qualquer. Eu era o professor e como tal, comecei por organizar o espaço, com os alunos. Ao fundo da sala do lado esquerdo, improvisamos uma bancada com fogão para aquecer o leite e distribuímos a tarefa a uma equipa de três. Aquecer, distribuir e lavar a panela e os copos.
Ao fundo da sala, do lado direito, organizamos uma pequena oficina com os utensílios, martelos, serras, esquadros, berbequim, tesouras, serrotes, etc. e uma bancada de trabalho. Outra equipa de três alunos ficava responsável pela sua organização, arrumo e sistema de requisição destes materiais, para fim de semana.
No armário lateral, organizamos os materiais e fichas das disciplinas a distribuir diariamente. Outra equipa de três alunos responsabilizava-se por manter arrumado o material, seleccionar diariamente as fichas de apoio e distribuí-las aos colegas.
Fiz ainda um duplicador de gelatina, num tabuleiro de alumínio, o que permitia tirar rapidamente 30 a 40 cópias dum documento.
Outra equipa de três alunos era a responsável pela manutenção e funcionamento do sistema eléctrico. Transportavam o motor para o exterior, num abrigo, verificavam o nível do óleo e da gasolina, atestavam o depósito, punham-no a funcionar e nos intervalos enquanto houvesse luz suficiente vinham a correr desligar o motor, para deste modo, poupar gasolina, o que permitia prolongar no final do dia, mais meia hora de funcionamento, para ver.... desenhos animados, como me tinham pedido.
Era neste cantinho que o motor Honda trabalhava para nós!


Havia ainda dois alunos responsáveis pela marcação das presenças e faltas e outros dois com a tarefa de manutenção da limpeza da sala e arrumação geral.
À sexta feira fazíamos o balanço das actividades e do desempenho das tarefas, mudávamos de equipas e espreitávamos a programação da semana seguinte, no manual da telescola.
Com estas quatro equipas a funcionar e tarefas distribuídas sentia-me o capitão dum navio a velejar a toda a vela...
Atenção aos alunos a precisarem mais de apoio, atenção aos pais, que por natureza são mais conservadores, atenção ao delegado escolar, atenção ao Inspector, atenção a tudo o que mexe e põe em causa este empreendimento.
Sentia que os alunos andavam muito motivados e eufóricos com esta organização. Tentavam corresponder com o melhor que sabiam e podiam e como se conheciam todos, persuadia-os a desenvolverem relações de camaradagem, amizade, respeito mútuo e inter-ajuda.
Um dia, quando achei que a máquina estava no auge do seu funcionamento, entreguei a chave da sala um aluno e disse que não demoraria muito. Eles que começassem a trabalhar. Demorei-me intencionalmente, interrogando-me: Serão eles capazes? Estou a pedir muito?
Que alegria e satisfação poder confirmar, que eles tinham alcançado um nível de autonomia tão grande, que conseguiam desempenhar todas as tarefas responsavelmente.
Tinham posto o leite a aquecer para o lanche, tinham visto o nível do óleo e da gasolina, tinham selecionado as fichas do dia, tinham marcado as presenças e as ausências e sentados, em silêncio ouviam a transmissão pela tv.
Era verdade! Cada professor transporta em si o desejo de se anular e deixar de ser imprescindível! A autonomia dos alunos impõe a diminuição da "presença" do professor.

Em Janeiro ou Fevereiro recebemos a visita do Inspector. Um homem mais velho do que eu, de bigode e “pêra”, a surgirem os primeiros cabelos brancos, na casa dos trinta... baixo e entroncado.
Após as apresentações gerais, à frente dos alunos e lamentações por só agora ter podido visitar-nos, o semblante foi-se desanuviando e deixou marcada a data de posterior visita para observação da aula de francês. Entretanto foi dizendo que discordava da exposição do material da Educação visual e trabalhos práticos, pois se desaparecesse algum objecto eu seria o único responsável.
Que sim, não havia problema, eu assumia toda a responsabilidade e os meus alunos mereciam-me toda a confiança.
Após a sua saída os alunos manifestaram a sua revolta para com o Inspector, pois,
                   Quem é que ele pensa que nós somos?
                   Nós não tiramos nada a ninguém!
- Concerteza, concerteza, deve ter-nos confundido com outras escolas.
Mas... a juventude irreverente (minha e dos alunos) a sussurrar: porque não aproveitar e pregar uma partida ao Inspector?
Mas como?
Fazemos assim:
Nesse dia a aula decorre normalmente. A equipa distribui as fichas, sentamo-nos, ouvimos a emissão, e depois eu faço as perguntas de compreensão, ás quais vocês respondem naturalmente, “oui” ou “non”. Ao Pedro e à Maria faço perguntas mais desenvolvidas, estilo, O que pensas sobre a importância dos frutos? E eles falam, falam até eu dizer que já chega. E pronto. Desta forma ele fica a pensar que todo falam muito bem francês.
Isto foi fogo que deu na estopa. Não falavam noutra coisa, enquanto eu me interrogava se seria boa ideia, ou tinha deixado o barco bater em rochedo. Pelo menos, permitia-me ir recuperando alguma energia, avisando: Vamos aprender francês, para fazer boa figura!
E se o Inspector descobrisse? E se eles não aguentassem a pressão e se desmanchassem? E se contassem em casa e os pais me viessem perguntar o porquê dessa agitação? E que andava eu a ensinar? O engano? O fingimento? Eram esses os meus valores?
Esta aventura teria de seguir em frente, já era tarde para voltar atrás, mas prometi a mim mesmo, que não me meteria noutra, tão cedo.
No dia aprazado, após os cumprimentos iniciais, sentou-se o Inspector ao fundo da sala e eu a seu lado. Sentia no ar a agitação dos olhares e as palpitações daqueles pequenos corações, que um ou outro suspiro atraiçoava.
A colega no Monte da Virgem iniciava a aula a preto e branco no monitor da nossa sala. Um pequeno filme de desenhos animados, uma pequena história, e depois algumas frases de gramática. Fim de emissão. Tinha chegado a minha vez. Levantei-me fui para a frente dos alunos e comecei o ensaio. Perguntava a dois ou três alunos e a reposta surgia comprometida: “Oui”
-Trés bien, merci!
E agora uma pergunta mais difícil a requerer uma resposta mais elaborada!
E mais duas ou três perguntas a pedirem um “non”. Outra pergunta dirigida à Maria, intercalada por outras a solicitar o “oui “ e uma difícil ao Pedro, permitindo-lhe parler, parler...
A turma vibrava com o desempenho de todos. Eu olhava o Inspector e confirmava que ele não se apercebia do engano. Ele olhava a floresta e não via a árvore. Comecei a sentir pena dele. Não gostava de estar no seu lugar. Era melhor acabar com aquilo. Para os alunos era um momento de glória, tínhamos pregado uma partida ao “Perinhas”, mas eu iria recordá-la como uma acção menos feliz. Esperava não ter de me arrepender.
Por fim, o Inspector perguntou-me se utilizava alguma metodologia diferente do habitual, porque estava admirado com o desempenho dos alunos, em tão pouco tempo de aulas. A minha consciência não me permitiu gozar o efeito da aventura! Eu queria despachar aquilo com urgência. Aproveitei para os elogiar, dizendo que eram muito inteligentes e aprendiam depressa.
Ainda me perguntou se achava razoável o pedido doutros colegas sobre a necessidade de dicionários. Claro, que não ia contradizer os meus colegas e que sim, com dicionários eles teriam aprendido ainda mais.
Quando ele se foi embora, ficamos na sala a festejar a nossa representação. Tentei baixar o entusiasmo, dizendo que todos tinham estado bem, mas essencialmente porque eles tinham estudado muito e eram bons rapazes.
Mais tarde, quando fui formador em vários cursos e seminários de formação e professor na Escola Superior de Educação em Lisboa, contei esta história, para realçar a importância do professor e da sala de aula, como elemento fulcral e essencial do sistema educativo (em cada sala de aula, o professor tem mais poder que o ministro).  Salientei a aprendizagem que tinha feito com os colegas da Escola Moderna, na organização cooperativa do trabalho e chamei atenção para a necessidade dos instrumentos de observação que nos permitem ver as árvores e não somente a floresta! Foi Maria Montessori, (1870-1952) quem primeiro chamou atenção para a importância da observação na educação e o Prof. Albano Estrela, quem em Portugal, primeiramente criou um conjunto de instrumentos de observação, primeiro passo, para o desenvolvimento duma ciência da educação!
Saiu de lá o Inspector sem uma palavra para a nossa organização! E se ele tivesse construído uma grelha de análise dos comportamentos verbais verificava, numa planta da sala, que somente dois alunos respondiam elaboradamente e a todos os outros correspondiam respostas curtas e breves, OUI ou NON.
Faz muita falta sabermos observar!

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

SORRISOS


Eu era um jovem professor primário, colocado numa aldeia do Alto Minho, Grade, freguesia do concelho de Arcos de Valdevez.
Era o meu terceiro ano de trabalho e as minhas convicções políticas, sociais e pedagógicas davam-me a segurança possível, para ultrapassar as dificuldades do dia-a-dia, com entusiasmo e alegria.
 Eu sabia que era um pouco estranho para aquela comunidade a vinda dum professor, homem, de barba crescida, que se deslocava de mota. Mas aquela comunidade não era assim tão diferente da minha aldeia. Eu conhecia os ritmos anuais do trabalho, o ciclo das festas e os costumes básicos do nascer até à morte. Conhecia o espírito de sobrevivência dos agricultores e assalariados de minifúndio, dos pequenos comerciantes e emigrantes. Sabia qual a importância que davam à educação e ao estatuto do professor. A vida não era fácil para ninguém.
Também sabia que tanto como as minhas aptidões técnicas e científicas, também o saber estar e ser eram fundamentais para captar a confiança dos alunos, pais e restante comunidade.
Tinha as quatro classes num total de 23 alunos, em número semelhante de rapazes e raparigas.
A escola era pobre, sem material didático, nem aquecedores. Os alunos pertenciam a famílias rurais, assalariados, pequenos agricultores e vários emigrantes.
Ao fim de algum tempo, já se notavam mudanças na relação dos alunos comigo e na afabilidade com que os pais e elementos da comunidade se me dirigiam, sempre com consideração e de forma respeitosa, à qual nem precisava esforçar-me muito para corresponder.
O problema foi quando, após frequentar um minicurso de râguebi, quis introduzir esta atividade no currículo dos alunos. A Direção Geral dos Desportos tinha custeado o curso e deu-me duas bolas. O resto seria comigo e com os alunos.
Com o ímpeto da minha pouca experiência mas muito entusiasmo, pedi autorização a um proprietário local se permitia o abate de três pinheiros para fazer umas balizas no recreio da escola.
Com a ajuda dos alunos mais velhos lá cortamos, alisamos e aprontamos os troncos que serviriam de balizas para a prática do futebol e de postes (que sobressaíam das balizas) para o râguebi. Estava a aprender a rentabilizar os parcos recursos!
Eu já tinha surpreendido alguns alunos a sorrirem à socapa. Perguntei-lhes o que se passava, mas eles não adiantaram muito, pelo que pensei que fosse o resultado duma atividade diferente que permitia mais informalidade e à vontade.
O recreio ficou enfeitado com novas balizas e dois postes.
Passámos a aprendizagem das regras: Passe, bloqueios, faltas, reposição da bola em jogo, pontuação, etc.
De início, as raparigas mostravam-se mais inibidas e comedidas nas placagens, mas aos poucos ganharam o seu espaço e respeito. E se corriam menos e placavam pior, tinham de longe mais visão de jogo e sentido de equipa.
Um dia… o Artur *, repartido entre o apoio ao professor e a aceitação da aldeia, levantou o dedo para pedir a palavra e disse:
 - Na aldeia todos se riem. Dizem que o professor não sabe fazer balizas!
Alguns riram e outros em minha defesa disseram que as pessoas não sabiam para que serviam os postes. Percebi que eles tinham entendido a inovação como um progresso de que os mais velhos estavam arredados.
Sorri. No lugar deles também me havia de rir. Mas não me importei. Confiava que com o tempo, eles próprios diriam aos pais o que era o râguebi e isto serviria de aprendizagem de como as pessoas reagem à inovação.
E o râguebi lá fazia o seu caminho alternado com o futebol e ganhando mais popularidade entre as raparigas que entre os rapazes.

Noutro dia, o Custódio* apressou-se e ansiosamente colocou em cima da secretária um rolo feito com papel castanho de embrulho e disse de sorriso rasgado:
- Foi a minha mãe que mandou. É para si.
Surpreso, sorri. Abri o pequeno embrulho e um aroma a chouriço caseiro saltou do tampo da secretária para as minhas narinas.
Condescendente, sorri e voltei a embrulhá-lo, enquanto silenciosamente pensava que devia ser gostoso, e disse-lhe para o levar de volta e dissesse a mãe que eu era funcionário público, recebia todos os meses o meu salário, pelo que não precisava dessa oferta.
O Custódio mostrava algumas dificuldades na aprendizagem, mas era pontual e assíduo. Vinha a pé duma aldeia distante, Carralcova, e pelo aspeto descuidado podia perceber que os pais teriam algumas dificuldades económicas.
Sorri interiormente pela oportunidade de mandar recado a toda a comunidade, através desta mãe, que eu professor, era diferente, não era suscetível de qualquer tentativa de suborno.
Mas eu não ia esperar muito pela resposta e pagar caro este sorriso de superioridade moral.
No dia seguinte, o mesmo Custódio abeira-se da secretária, com o mesmo embrulho e perante a minha surpresa disse:
- A minha mãe pergunta se não aceita por ser pouco.
Percebi a força do argumento e do recado, engoli em seco, era preciso alguma flexibilidade neste caso, tentei sorrir e disse-lhe:
- Diz a tua mãe que obrigado, mas que não mande mais nada porque eu não aceito.
Quando mais tarde em minha casa, partia o chouriço e o comia com broa e vinho, pus-me a imaginar que ela sorriu quando o filho lhe deu o recado, que deve ter pensado, ou até comentado com alguma vizinha, “Não queria, não queria, mas teve de aceitar”!
E voltei a sorrir! O chouriço era mesmo bom!

*O nome referido é inventado